Toxocarose

A toxocarose é causada pelos nemátodos Toxocara canis e T. cati. Estas espécies infetam frequentemente cães e gatos e são transmitidas aos humanos sobretudo através da ingestão acidental de ovos pela via fecal-oral. Os nemátodos de Toxocara não conseguem completar o ciclo de vida nos humanos, mas migram para órgãos (incluindo o fígado, pulmões, coração, cérebro e olhos) onde provocam inflamação e danos dos tecidos. Dependendo do local afetado, os doentes podem desenvolver larva migrans visceral ou larvas migrans ocular. Na larva migrans visceral podem estar presentes sintomas semelhantes aos da gripe, assim como manifestações hepáticas, pulmonares, neurológicas e cardíacas. Na larva migrans ocular verifica-se um comprometimento unilateral da visão e pode ser observado um granuloma branco e elevado no exame do fundo ocular (fundoscopia). O diagnóstico é orientado pela suspeita clínica e pode ser confirmado com serologia. O tratamento inclui terapêutica anti-helmíntica e corticoterapia na doença grave.

Última atualização: May 23, 2022

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

Características Gerais e Epidemiologia

Características básicas da Toxocara

  • Nemátodo (“roundworm”)
  • Helminta dióico (os machos e as fêmeas têm morfologias diferentes):
    • As fémeas são mais compridas que os machos.
    • Os machos têm uma cauda curvada com espículas emparelhadas.
  • Tamanho: 4-12 cm de comprimento
  • Apresentam sistemas digestivos completos
  • Movem-se em ondas contráteis
  • Ovos:
    • Cor castanha
    • Forma esférica
    • Superfície granulosa ou perfurada
    • Muito resistentes a condições ambientais adversas
Toxocara ("roundworm")

Ovo esférico de Toxocara, de cor acastanhada e com superfície granulosa

Imagem: “Toxocara (roundworm)” por SuSanA Secretariat. Licença: CC BY 2.0

Espécies clinicamente relevantes

A Toxocarose é causada pelas seguintes espécies:

  • Toxocara canis (nemátode de cão)
  • Toxocara cati (nemátode de gato)

Epidemiologia

  • Estados Unidos:
    • Prevalência: 5%–15% da população
    • Cerca de 10.000 casos diagnosticados por ano.
  • Internacional:
    • 2%–5% adultos saudáveis de países ocidentais urbanos
    • 14%–37% em zonas rurais
    • Mais comum em regiões tropicais e subtropicais
  • Raça:
    • Sem predisposição racial
    • Mais comum em negros não-hispânicos
  • Idade: comum em crianças pequenas e pessoas < 20 anos de idade

Patogénese

Reservatório

  • T. canis:
    • Cães (a maioria são infetados logo após o nascimento)
    • Raposas
  • T. cati: gatos

Transmissão

A transmissão ocorre através:

  • Via Fecal-oral
  • Ingestão de animais infetados

Fatores de risco do hospedeiro

  • Idade jovem
  • Viver com cães e gatos
  • Más condições de saneamento e lavagem desadequada das mãos
  • Consumo de:
    • Carne mal cozinhada
    • Frutas e legumes não lavados
  • Contacto com solo contaminado de um quintal, caixa de areia, parque ou parque infantil
  • Viver em:
    • Áreas rurais
    • Pobreza
    • Ambiente quente e húmido (favorece a sobrevivência dos ovos)

Ciclo de vida e fisiopatologia

Nos animais:

  • Os vermes adultos Toxocara vivem no intestino delgado de cães e gatos.
  • Os ovos são excretados nas fezes no exterior → transmissão para um novo hospedeiro
  • Os ovos eclodem no intestino e libertam larvas → penetram através da parede intestinal → entram na circulação sanguínea
  • As larvas migram pelos pulmões e traqueia → tosse → engolidas através do trato gastrointestinal
  • Os vermes adultos desenvolvem-se no intestino delgado → depositam ovos → excretados nas fezes

Nos humanos:

  • A infeção ocorre através da transmissão fecal-oral.
  • Os ovos eclodem no intestino e libertam larvas → penetram através da parede intestinal → entram na circulação sanguínea
  • Invadem órgãos em todo o corpo, em especial:
    • Músculos
    • Fígado
    • Coração
    • Pulmões
    • Olhos
    • Cérebro
  • Resposta imune contra antigénios larvares → inflamação → dano tecidual → sinais e sintomas clínicos
  • A Toxocara não consegue completar o ciclo de vida nos humanos.

Apresentação Clínica

A maioria das infeções por Toxocara são assintomáticas e têm uma evolução benigna. As 2 principais formas de toxocarose são a larva migrans visceral e a larva migrans ocular.

Larva migrans visceral

Geral:

  • Febre
  • Anorexia
  • Mal-estar
  • Linfadenopatia
  • Lesões tipo urticária pruriginosa

Hepática:

  • Dor abdominal
  • Hepatomegalia
  • Nódulos hepáticos

Pulmonar:

  • Dispneia
  • Tosse não produtiva
  • Sibilos
  • Aperto torácico

Manifestações menos comuns:

  • Envolvimento muscular
  • Envolvimento do SNC:
    • Meningite eosinofílica
    • Meningoencefalite
    • Vasculite cerebral
    • Lesões ocupantes de espaço
  • Envolvimento cardíaco:
    • Miocardite
    • Pericardite
    • Endocardite de Loeffler (eosinofílica)
    • Insuficiência cardíaca
    • Tamponamento cardíaco (por derrame pericárdico)

Larva migrans ocular

Sintomas unilaterais:

  • Alteração da visão
  • Miodesópsias
  • Estrabismo

Achados:

  • Granuloma branco e elevado (pode ser confundido com retinoblastoma)
  • Uveíte
  • Retinite
  • Endoftalmite
  • Esclerite

Complicações:

  • Descolamento da retina
  • Cegueira

Diagnóstico

O diagnóstico de toxocarose requer alto índice de suspeita.

Avaliação laboratorial

Testes serológicos:

  • ELISA:
    • Deteta anticorpos para antigénios excretores/secretores de Toxocara
    • Um teste positivo não significa infeção ativa.
    • Pode ser negativo na larva migrans ocular
  • Teste de Western blot:
    • Mais sensível e específico
    • Dispendioso
    • Pode ser usado como um teste de confirmação

Achados de suporte:

  • Leucocitose
  • Eosinofilia
  • Elevação das transaminases → envolvimento hepático
  • Hipergamaglobulinemia (↑ IgE e IgG)

Biópsia

  • Fornece um diagnóstico definitivo, mas raramente está indicada
  • Achados: Larvas de Toxocara em lesões granulomatosas eosinofílicas

Exames de imagem

Os exames imagiológicos são geralmente orientados pela apresentação clínica do paciente.

  • Radiografia do tórax:
    • Infiltração peribrônquica bilateral
    • Infiltrados parenquimatosos
    • Derrame pleural
  • Ecografia: múltiplas áreas hipoecoicas no fígado
  • Tomografia Computadorizada:
    • Pulmões: múltiplos nódulos pulmonares com opacidades em vidro despolido
    • Fígado: lesões de baixa densidade
    • Cérebro: granulomas corticais ou subcorticais hiperintensos

Tratamento e Prevenção

Tratamento da larva migrans visceral

Os pacientes com sintomas leves não necessitam de tratamento, uma vez que a doença é autolimitada. Nos pacientes com doença moderada a grave podem ser administrados:

  • Fármacos anti-helmínticos:
    • Albendazole
    • Mebendazol
  • Prednisolona nas doenças respiratórias, miocárdicas ou do SNC graves.

Tratamento da larva migrans ocular

  • Terapêutica anti-helmíntica
  • Prednisolona nos casos em que a inflamação coloca em risco a visão

Prevenção

  • Eliminação adequada das fezes de cães e gatos
  • Desparasitação de animais de estimação
  • Boas práticas de higiene
  • Cobrir as caixas de areia enquanto não são utilizadas.

Comparação de Helmintas Semelhantes

Tabela: Comparação de helmintas semelhantes e doenças associadas
Microorganismo Enterobius vermicularis Toxocara canis Ascaris lumbricoides Strongyloides stercoralis Schistosoma mansoni
Características Nematódo Nematódo Nematódo Nematódo Tremátodo
Reservatório Humanos Cães Humanos
  • Humanos
  • Cães
  • Gatos
Humanos
Transmissão Fecal-oral Fecal-oral Fecal-oral Contacto da pele com o solo contaminado Contacto da pele com água contaminada
Clínica
  • Prurido anal
  • Dor abdominal e vómitos são menos frequentes.
  • Larva migrans visceral
  • Larva migrans ocular
  • Tosse
  • Sibilos
  • Hemoptises
  • Cólica abdominal
  • Náuseas
  • Desnutrição
  • Tosse
  • Sibilos
  • Dor abdominal
  • Diarreia
  • Rash
  • “Prurido do nadador”
  • Febre de Katayama
  • As infeções crónicas levam à formação de granulomas, que provocam doenças cerebrais, pulmonares, intestinais e hepáticas.
Diagnóstico
  • Clínica
  • Teste da fita adesiva de celofane
  • Serologia
  • Biópsia
Análise das fezes
  • Análise das fezes
  • Serologia
  • Análise das fezes
  • Serologia
Tratamento
  • Albendazole
  • Mebendazol
  • Pamoato de pirantel
  • Albendazole
  • Mebendazol
  • Albendazole
  • Mebendazol
  • Ivermectina
  • Albendazole
Praziquantel
Prevenção Boa higiene
  • Boa higiene
  • Desparasitação de cães.
  • Eliminação adequada das fezes dos cães
  • Boa higiene
  • Lavar as frutas e legumes crus antes de consumir.
  • Usar sapatos e roupas de proteção.
  • Melhorar as condições de saneamento.
  • Evitar nadar ou tomar banho em água contaminada.
  • Beber água fervida ou engarrafada.
  • Melhorar as condições de saneamento.

Diagnósticos Diferenciais

  • Aspergilose broncopulmonar alérgica (ABPA): reação de hipersensibilidade a Aspergillus. Os pacientes apresentam sintomas de obstrução das vias aéreas, como dispneia, sibilos, tosse produtiva e febre. Se não tratada, pode evoluir para bronquiectasias e fibrose pulmonar. A eosinofilia pode estar presente. O diagnóstico é obtido com exames de imagem, níveis de IgE, testes prick cutâneos e serologias. O tratamento inclui corticoterapia e terapêutica antifúngica.
  • Retinoblastoma: neoplasia intraocular primária mais comum na infância: apresenta-se tipicamente com leucocória (reflexo branco anormal no olho) numa criança com menos de 2 anos de idade. A doença pode afetar 1 ou ambos os olhos (ao contrário da toxocarose). O diagnóstico é estabelecido com fundoscopia e imagiologia. O tratamento pode incluir enucleação, fotocoagulação a laser, radiação e quimioterapia.
  • Toxoplasmose: doença infeciosa causada por Toxoplasma gondii: A apresentação clínica e as complicações da toxoplasmose dependem do estado imune do hospedeiro e podem variar, desde uma síndrome aguda semelhante à gripe até a toxoplasmose do SNC, coriorretinite, ou pneumonia. O diagnóstico depende da apresentação, mas pode incluir punção lombar, imagiologia, biópsia, serologia ou PCR. O tratamento inclui terapêutica antimicrobiana.
  • Hepatite vírica inflamação hepática causada por infeção por um vírus da hepatite: Os pacientes podem apresentar uma fase prodrómica com febre, anorexia e náuseas. Também pode estar presente dor abdominal no quadrante superior direito, icterícia e elevação das transaminases. O diagnóstico é estabelecido por testes serológicos virais, que permitem a distinção entre hepatite vírica e larva migrans visceral. O tratamento da hepatite aguda é de suporte.

Referências

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  2. Woodhall D, Jones JL, Cantey PT, Wilkins PP, Montgomery SP. (2014). Neglected parasitic infections: what every family physician needs to know. Am Fam Physician 89(10):803–811.
  3. Hotez PJ, Wilkins PP. (2009). Toxocariasis: America’s most common neglected infection of poverty and a helminthiasis of global importance? PLoS Negl Trop Dis 3(3).
  4. Despommier D. (2003). Toxocariasis: clinical aspects, epidemiology, medical ecology, and molecular aspects. Clin Microbiol Rev 16:265–272.
  5. Herrmann N, Glickman LT, Schantz PM, Weston EI, Domanski LMA. (1985). Seroprevalence of zoonotic toxocariasis in the United States: 1971-1973. J Epidemiol 122(5):890–896.
  6. Weller PF, Leder K. (2020). Toxocariasis: visceral and ocular larva migrans. In Baron EL (Ed.), UpToDate. Retrieved April 12, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/toxocariasis-visceral-and-ocular-larva-migrans
  7. Huh S, Lee S. (2019). Toxocariasis. In Brusch JL (Ed.), Medscape. Retrieved April 12, 2021, from https://emedicine.medscape.com/article/229855-overview
  8. Pearson RD. (2020). Toxocariasis. MSD Manual Professional Version. Retrieved April 12, 2021, from https://www.msdmanuals.com/professional/infectious-diseases/nematodes-roundworms/toxocariasis
  9. Winders WT, Merkin-Smith L. (2020). Toxocara canis. StatPearls. Retrieved April 12, 2021, from https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK538524/

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