Síndrome de Bartter

A síndrome de Bartter é uma doença autossómica recessiva rara que afeta os rins e apresenta-se antenatalmente com manifestações graves ou com risco e vida na infância, ou na vida adulta com um curso mais ligeiro, dependendo do defeito genético. As manifestações clínicas da doença resultam da reabsorção renal defeituosa do cloreto de sódio no segmento espesso do ramo ascendente da ansa de Henle, onde 30% do sal filtrado é normalmente reabsorvido. A síndrome de Bartter é caracterizada pela espoliação de sal e hipocalemia e apresenta distúrbios eletrolíticas e respetivas consequências, como vómitos e desidratação. O diagnóstico é feito por exames laboratoriais, que mostram a típica alcalose metabólica hipocalémica e hipercalciúria. Alterações laboratoriais adicionais incluem aumento da renina sérica e aldosterona, mas os pacientes têm pressão arterial normal. O tratamento centra-se na normalização dos níveis de eletrólitos séricos. Os inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA) e bloqueadores dos recetores de angiotensina são utilizados para melhorar a hipocalemia e limitar a proteinúria.

Última atualização: Jun 13, 2022

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

Descrição Geral

Definição

A síndrome de Bartter (SB) é uma doença genética rara (autossómica recessiva) que resulta de um defeito na reabsorção de cloreto de sódio no segmento espesso do ramo ascendente do laço de Henle, levando a hipocalemia e alcalose metabólica. Esta síndrome simula a toma de diuréticos de ansa a longo prazo.

Epidemiologia

  • Prevalência: 1 em 1 milhão de pessoas nos Estados Unidos
  • A síndrome de Bartter é menos comum que a síndrome de Gitelman (uma doença semelhante do túbulo renal, observada em 1-10 em 40.000 pessoas).
  • A prevalência de heterozigotos com uma das mutações genéticas que causam síndrome de Bartter é > 1% nos Estados Unidos e chega a 3% na Ásia.

Fisiopatologia e Classificação

Fisiologia normal na ansa de Henle

Nas células que revestem a ansa de Henle:

  • A bomba de sódio/potássio-adenosina trifosfatase (Na+/K+-ATPase) na membrana basolateral leva 3 Na+ para fora da célula (para dentro do sangue) e 2 K+ para dentro da célula, resultando em:
    • ↓ Concentração intracelular de Na+
    • ↑ Concentração intracelular K+
  • O cotransportador Na+/K+-2Cl (também conhecido como NKCC2, da sigla em inglês) na membrana apical reabsorve 1 Na+, 1 K+, e 2 Cl do lúmen tubular.
    • Eletroneutro (2 cargas positivas e 2 negativas movendo-se na mesma direção)
    • Impulsionado pela baixa concentração de Na+ dentro da célula
  • O Na+ trazido através do NKCC2 é bombeado para fora através do Na+/K+-ATPase
  • O Cl trazido através do NKCC2 sai principalmente através do NKCC2 na membrana basolateral (chamado canal de cloro B (ClC-Kb))
    • O ClC-Ka (canal de cloro Ka) é outro canal de cloro que se pensa ter uma função redundante
    • Para que o ClC-Kb e o ClC-Ka funcionem corretamente, é necessária uma pequena subunidade proteíca chamada barttin.
    • Nota: Estes mesmos canais de cloro são encontrados no ouvido, e as mutações nestes canais podem levar à surdez.
  • O K+ trazido para a célula através do NKCC2 é reciclado de volta para o lúmen através dos canais de potássio renal externo medular (ROMK) → permite a reabsorção contínua de NaCl
  • Reabsorção de cálcio e magnésio:
    • O movimento de K+ carregado positivamente para o lúmen e Cl carregado negativamente para fora do lúmen (e para dentro da corrente sanguínea) faz com que o lúmen fique mais carregado positivamente do que o espaço peritubular.
    • Esta carga positiva impulsiona a reabsorção paracelular de Na+, Ca2+e Mg2+.
O transporte de iões no segmento espesso do ramo ascendente da ansa de henle

O transporte de iões no segmento espesso do ramo ascendente da ansa de Henle
ATPase: adenosina trifosfatase
ClC-Ka: canal de cloro Ka
ClC-Kb: canal de cloro Kb
NKCC2: cotransportador Na+/K+-Cl 2
ROMK: potássio renal medular externo

Imagem de Lecturio.

Fisiopatologia na síndrome de Bartter

Devido a um dos vários defeitos genéticos autossómicos recessivos, existe um distúrbio tubular renal variável, caracterizado pela espoliação de sal e hipocalemia em todos os subtipos.

  • A síndrome de Bartter é caracterizada pelo comprometimento do NKCC2, que se encontra na porção espessa do ramo ascendente da ansa de Henle.
  • A deficiência deste transportador vai ↓ reabsorção na porção espessa do ramo ascendente da ansa de Henle de:
    • Sódio
    • Potássio
    • Cloro
  • ↓ Reabsorção de iões → leva ao ↑ da entrega distal destes iões
    • Estes iões permanecem no lúmen tubular enquanto a urina se desloca distalmente.
    • ↑ Entrega distal de Na+ → ↑ o gradiente de eletronegatividade através da membrana luminal → ↑ excreção de K+ → hipocalemia
    • ↑ Entrega distal de K+ → ↑ troca de K+ por H+ no tubo coletor → ↑ excreção de H+ → alcalose metabólica
  • ↑ Na+ na urina → ↑ água livre na urina, resultando em:
    • Incapacidade de concentrar a urina
    • Depleção de volume → causa a ativação do SRAA e leva ao hiperaldosteronismo secundário
      • A estimulação a longo prazo da SRAA causa hiperplasia do aparelho justaglomerular e aumento dos níveis de renina.
  • ↑ Libertação renal de prostaglandina E2
    • ↑ Fluxo de sangue renal e taxa de filtração glomerular
    • ↑ Secreção de Renina
    • ↑ Na+ e excreção de água livre
  • Também da perda urinária de cálcio e magnésio.
    • ↓ Reabsorção de NaCl → ↓ Reabsorção de Ca2+ e Mg+
    • A espoliação de cálcio na urina pode levar a nefrocalcinose.
  • A ativação de mutações no recetor sensor de cálcio (CaSR) na membrana basolateral também pode prejudicar o transporte de NaCl → provoca uma forma ligeira de SB
    • ↑ função CaSR → ↓ efluxo de K+através da ROMK → ↓ atividade do NKCC2
    • Esta mutação é autossómica dominante.
    • Também leva a um “resetting” para baixo do nível de cálcio sérico normal → resulta na ↓ hormona paratiroideia (PTH) e hipocalcemia

Classificação por mutações

Existe uma heterogeneidade genética significativa na SB; pode resultar de mutações homozigotas ou heterozigotas mistas em qualquer um dos genes que reduzem a atividade dos transportadores de eletrólitos na porção espessa do ramo ascendente da ansa de Henle. Assim, a gravidade e a apresentação clínica da SB variam entre cada tipo.

Tabela: Resumo de 5 subtipos da síndrome de Bartter, dependendo do gene envolvido e do transportador afetado
Nome Tipo Proteína com defeito Gravidade da apresentação clínica
Síndrome de Bartter Neonatal (síndrome de hiperprostaglandina E) I NKCC2 Grave
Síndrome de Bartter Neonatal II Canal ROMK Grave
Síndrome de Bartter clássica III ClC-Kb Ligeira
Síndrome de Bartter clássica com surdez neurossensorial (síndrome de hiperprostaglandina E) IVa Barttin (a subunidade β de ClC-Ka e ClC-Kb) Grave
IVb Mutações simultâneas no ClC-Ka e no ClC-Kb Grave
Síndrome de Bartter com hipocalcemia (também chamado hipoparatiroidismo autossómico dominante) V CaSR Ligeira
Diferentes canalopatias na síndrome de bartter

Diferentes canalopatias na síndrome de Bartter
ATPase: adenosina trifosfatase
ClC-Ka: canal de cloro Ka
ClC-Kb: canal de cloro Kb
NKCC2: cotransportador Na+/K+-Cl 2
ROMK: potássio renal medular externo

Imagem de Lecturio.

Apresentação Clínica

As manifestações clínicas da SB são devidas principalmente a desequilíbrios eletrolíticos e respetivas consequências. Os sintomas são muito menos pronunciados nos heterozigotos. Os defeitos tubulares no transporte de iões produzem um distúrbio clínico semelhante ao observado com a toma de um diurético de ansa (por exemplo, furosemida) a longo prazo.

Apresentações em recém-nascidos

Tipicamente observado nos tipos I, II, IVa e IVb. Os achados mais comuns incluem:

  • Polidrâmnios antenatal
  • Parto prematuro
  • Surdez neurossensorial (tipos IVa e IVb)
  • Anormalidades eletrolíticas:
    • Hipocalemia
    • Alcalose metabólica
    • Hipercalciúria
  • Poliúria
  • Vómitos
  • Diarreia
  • Perda ponderal/Má progressão estaturo-ponderal
  • Atraso de crescimento e desenvolvimento
  • Características faciais anormais
    • Testa proeminente
    • Olhos grandes
    • Estrabismo
    • Orelhas salientes
    • Boca descaída
Criança com síndrome de bartter antes do tratamento

Criança com síndrome de Bartter, com desidratação grave antes do tratamento

Imagem: “Bartter’s child before treatment showing severe dehydration” por Sampathkumar K et al. Licença: CC BY 2.0

Apresentações em crianças, adolescentes e adultos

Os achados mais comuns incluem:

  • Anormalidades eletrolíticas:
    • Hipocalemia
    • Alcalose metabólica
    • Hipercalciúria
    • Hipofosfatemia em alguns pacientes com hiperparatiroidismo secundário
    • Nível sérico normal ou ligeiramente diminuído de magnésio
  • Vómitos
  • Poliúria e polidipsia devido à diminuição da capacidade de concentração urinária
  • Cãibras abdominais
  • Desidratação/hipovolemia
  • Hipotensão
  • Obstipação
  • Fraqueza muscular
  • Disfunção renal (manifestação tardia):
    • Proteinúria
    • ↓ TFG

Diagnóstico

O diagnóstico de SB é realizado por achados laboratoriais após a suspeita clínica da história clínica e exame físico.

História clínica e exame objetivo

  • Avaliar para vómitos sub-reptícios; os achados podem incluir:
    • Cicatrizes na mão por inserção na boca
    • Erosão dentária
    • Parotidite
  • Excluir o uso de diuréticos não prescritos.
  • Perguntar sobre história familiar de nefrocalcinose.
  • Observar características faciais.
  • Hipotensão (o hiperaldosteronismo primário apresentar-se-á normalmente com hipertensão).

Estudo laboratorial

  • Electrólitos séricos:
    • Hipocalemia inexplicada (uma característica chave no diagnóstico da SB)
    • Alcalose metabólica
    • Hipomagnesemia
    • Hipofosfatemia
  • Electrólitos urinários:
    • ↑ Cloro urinário (diferencia a SB dos vómitos sub-reptícios, que terão um ↓ Cl urinário)
    • ↑ Cálcio urinário (diferencia a SB da síndrome de Gitelman, que terá uma ↓ do Ca2+ urinário)
    • ↑ Sódio urinário
    • ↑ Potássio urinário
  • Alterações adicionais do estudo laboratorial:
    • ↑ renina sérica
    • ↑ aldosterona sérica
    • ↑ Prostaglandina E2
    • ↑ PTH
  • Podem ser utilizados testes genéticos para procurar por mutações específicas.
  • Testes pré-natais:
    • Os níveis de cloro do fluido amniótico podem estar elevados.
    • O nível de alfa-fetoproteína está baixo na SB pré-natal.

Tratamento e Complicações

Os defeitos tubulares na SB não podem ser corrigidos (exceto por transplante renal). O objetivo do tratamento é diminuir os efeitos da elevação dos níveis das prostaglandinas, renina e angiotensina nos tipos I, II e IV. Na forma adulta mais ligeira, ou SB clássica, o objetivo principal é normalizar os níveis séricos de potássio.

Síndrome de Bartter pré-natal com polidrâmnio grave

  • AINEs para antagonizar os efeitos da ↑ das prostaglandinas
    • Evitar os AINE após as 32 semanas de gestação (pode causar o encerramento prematuro do canal arterial).
    • Se forem utilizados AINEs, deve ser repetida uma avaliação ecografia para averiguar o desenvolvimento de regurgitação tricúspide
  • Considerar amniocentese intermitente no 3º trimestre para tratar polidrâmnios graves através da drenagem excessiva de líquido amniótico.

Síndrome de Bartter Neonatal tipos I, II, e IV

  • Pode ser necessária uma infusão salina intravenosa para tratar a desidratação.
  • Será provavelmente necessária a suplementação oral de potássio.

Síndrome de Bartter infantil ou do adulto tipo III

  • Suplementação oral de eletrólitos:
    • Para corrigir desequilíbrios de fluidos e eletrólitos
    • O mais provável é que seja necessário:
      • Potássio
      • Sódio
      • Magnésio
  • AINEs:
    • Antagonizar os efeitos do aumento das prostaglandinas
    • Exemplos: indometacina, celecoxib
  • Diuréticos poupadores de potássio:
    • Bloqueiam a troca tubulo-distal sódio-potássio → pode ↑ K+ sérico e reverter a alcalose metabólica
    • Exemplos: amilorida, espironolactona
  • Inibidores da ECA e bloqueadores dos recetores de angiotensina:
    • Diminuem os níveis elevados de angiotensina II e aldosterona
    • Limitam a proteinúria
    • Aumentam o potássio sérico
  • Transplante renal:
    • Para raros doentes com doença renal em fase terminal e/ou nefrocalcinose
    • As anomalias tubulares resolvem após o transplante renal, sem recorrência.

Complicações

  • Arritmias cardíacas e morte súbita cardíaca devido a desequilíbrios eletrolíticos
  • Má evolução estaturo-ponderal
  • Atraso de desenvolvimento
  • Osteopenia ou osteoporose devido à perda de cálcio ósseo

Diagnóstico Diferencial

  • Síndrome de Gitelman: distúrbio autossómico recessivo causado por uma das várias mutações nos genes que codificam os transportadores de cloreto de sódio e magnésio nos segmentos sensíveis à tiazida do nefrónio distal. A síndrome de Gitelman é caracterizada por perda renal de potássio, hipocalcemia, alcalose metabólica, hipocalciúria, hipomagnesemia e hiperaldosteronismo hiperreninémico com pressão arterial normal. Uma característica chave que diferencia a síndrome de Gitelman da síndrome de Bartter é o nível de cálcio urinário, que normalmente será normal-alto na SB e baixo na SG.
  • Abuso de diuréticos com diuréticos de ansa: têm como alvo a porção espessa do ramo ascendente da ansa de Henle e aumentam a excreção de sódio, potássio, cloreto, cálcio, magnésio e água. A hipocalemia é um efeito adverso comum e pode ser significativa. Os diuréticos da ansa são utilizados principalmente no tratamento de patologias edematosas, como insuficiência cardíaca e cirrose. Também podem ser usados no tratamento da hipertensão.
  • Síndrome de vómitos cíclicos: condição caracterizada por episódios recorrentes e prolongados de náuseas graves e vómitos. A alcalose metabólica e a hipocalemia podem resultar de perdas gastrointestinais. A causa é desconhecida e pode começar em qualquer idade. Os episódios de vómitos podem durar horas ou dias, com intervalos assintomáticos durante semanas. O diagnóstico é clínico, após exclusão de outras condições. O tratamento visa controlar os sintomas e evitar os desencadeantes, para além do uso de medicamentos para prevenir ou aliviar as náuseas.
  • Bulimia nervosa: distúrbio alimentar caracterizado por episódios recorrentes de compulsão alimentar com comportamento compensatório inadequado, muitas vezes incluindo vómitos autoinduzidos e/ou abuso de diuréticos, laxantes ou hormonas tiroideias. A bulimia nervosa está frequentemente associada a psicopatologia. O tratamento consiste em psicoterapia e muitas vezes em agentes psicofarmacológicos.
  • Estenose pilórica: obstrução da saída do estômago, devido à hipertrofia e hiperplasia do esfíncter pilórico. A estenose pilórica é a causa mais comum de obstrução gastrointestinal em crianças. Os recém-nascidos afetados apresentam tipicamente vómitos progressivos e não-biliares após a 3ª a 5ª semana de vida. e uma massa firme com forma semelhante a azeitona no epigástrio. O diagnóstico é feito por ecografia, e o tratamento consiste em fluidoterapia, correção de desequilíbrios eletrolíticos e cirurgia.
  • Hiperaldosteronismo: definido como aumento da secreção de aldosterona a partir da zona glomerulosa do córtex adrenal. O hiperaldosteronismo pode ser primário ou secundário a outras causas. Classicamente, o hiperaldosteronismo primário apresenta hipertensão, hipocalemia e alcalose metabólica. O diagnóstico é feito através de testes laboratoriais e exames de imagem das glândulas suprarrenais. O tratamento envolve o uso de medicamentos antagonistas dos recetores de aldosterona e a excisão cirúrgica de quaisquer tumores secretores de aldosterona.

Referências:

  1. Emmett, M., Ellison, D. H. (2019). Bartter and Gitelman syndromes. UpToDate. https://www.uptodate.com/contents/bartter-and-gitelman-syndromes
  2. Bartter syndrome. Retrieved May 5, 2021, from https://rarediseases.info.nih.gov/diseases/5893/bartter-syndrome#:~:text=Bartter%20syndrome%20is%20a%20group%20of%20very%20similar,volume%20of%20fluid%20surrounding%20the%20fetus%20%28amniotic%20fluid%29
  3. Online Mendelian Inheritance in Man. (n.d.). Bartter syndrome, Retrieved May 5, 2021, from https://www.omim.org/entry/607364
  4. Al Shibli, A., Narchi, H. (2015). Bartter and Gitelman syndromes: spectrum of clinical manifestations caused by different mutations. World Journal of Methodology 5(2):55–61.
  5. Bokhari, S.R.A., et al. (2021). Bartter syndrome. StatPearls. Retrieved May 5, 2021, from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK442019/

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