Sépsis nas Crianças

A sépsis é definida como uma síndrome de resposta sistémica ameaçadora de vida causada por vírus, bactérias, fungos, parasitas ou toxinas libertadas por um destes microrganismos. Dado terem um sistema imune imaturo, os recém-nascidos e as crianças são particularmente propensos à ocorrência de sépsis. Os indivíduos afetados podem apresentar sintomas específicos localizadores da fonte de infeção, mas, muitas vezes, a apresentação é com sintomas sistémicos inespecíficos. O diagnóstico baseia-se na história clínica, exame objetivo, avaliação laboratorial e exames de imagem. Para a obtenção de resultados favoráveis, é obrigatório haver um alto índice de suspeição, um diagnóstico rápido e uma intervenção clínica com tratamento adequado.

Última atualização: Oct 20, 2022

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

Descrição Geral

Definição

  • Síndrome de resposta inflamatória sistémica (SIRS, pela sigla em inglês): resposta inflamatória disseminada, definida por uma combinação de critérios clínicos (e.g., febre, taquicardia, taquipneia) e laboratoriais (e.g., leucograma).
  • Sépsis: SIRS associada à identificação de um agente patogénico causador da infeção (e.g., critérios de SIRS com uma urocultura positiva).

Critérios da síndrome de resposta inflamatória sistémica

Sépsis:

  • 2 dos critérios de SIRS (nota: os valores de cutoff dependem da idade):
    • Taquicardia ou bradicardia (em crianças < 1 ano de idade)
    • Taquipneia
    • Febre ou hipotermia: temperatura > 38°C ou < 36°C (> 100,4°F ou < 95,0°F)
    • Leucocitose, leucopenia ou células em banda ≥ 10%
  • Associados à suspeita ou confirmação de uma fonte de infeção

Sépsis grave:

  • Deve preencher os critérios de sépsis
  • Mais 1 dos seguintes:
    • Hipotensão (pressão arterial sistólica < 90 mmHg)
    • Disfunção orgânica:
      • Disfunção cardiovascular
      • ARDS
      • Falência renal
      • Alteração do estado mental
    • Ácido lático > 4 mmol

O choque séptico corresponde a uma sépsis grave não responsiva à ressuscitação com fluidos.

Taxas de mortalidade em choque

Taxas de mortalidade da sépsis, sépsis grave e choque séptico:
SIRS: síndrome de resposta inflamatória sistémica
ARDS: síndrome de dificuldade respiratória aguda

Imagem por Lecturio.

Epidemiologia e Etiologia

Epidemiologia

  • A incidência de sépsis está inversamente relacionada com a idade das crianças.
  • Neonatal:
    • Até 10% dos recém-nascidos têm uma infeção no primeiro mês de vida.
    • Mais comum em crianças com um peso ao nascimento < 1.500 gramas
    • A transmissão de patogénios ocorre, mais frequentemente, intraparto ou durante a passagem num canal de parto infetado.
    • A transmissão vertical tem ↓ devido à deteção e tratamento precoces do estreptococo do grupo B durante a gravidez
  • Lactentes e crianças:
    • Nos EUA, são hospitalizadas anualmente 75.000 crianças por sépsis grave.
    • 65% dos casos estão associados a infeções respiratórias ou da corrente sanguínea.
    • A incidência está a diminuir graças à imunização contra Streptococcus pneumoniae e Haemophilus influenzae.

Fatores de risco

  • Neonatais:
    • Imaturidade imunológica
    • Exposição a patogénios do trato genital materno
    • Traumatismo do couro cabeludo durante o parto
    • Procedimentos invasivos (por exemplo, intubação endotraqueal prolongada, alimentação parentérica)
    • Poucas defesas mecânicas (por exemplo, pele facilmente erodível)
    • Microrganismos resistentes
  • Lactentes e crianças:
    • Idade < 1 mês
    • Lesão grave (por exemplo, traumatismo penetrante)
    • Patologias crónicas e debilitantes
    • Imunossupressão (por exemplo, infeção pelo VIH)
    • Grandes incisões cirúrgicas
    • Colocação de dispositivos invasivos (por exemplo, dreno torácico)
    • Infeções do trato urinário recorrentes

Etiologia

  • Recém-nascidos:
    • Bactérias mais comuns:
      • Streptococcus grupo B (em recém-nascidos)
      • S. agalactiae
      • MRSA
      • Escherichia coli
      • Enterococcus faecalis
    • Bactérias menos comuns:
      • S. pneumoniae
      • Pseudomonas aeruginosa
      • Listeria monocytogenes
      • Klebsiella
      • H. influenzae
      • Mycoplasma hominis
    • Vírus:
      • Adenovírus
      • CMV
      • Enterovírus
      • Parechovírus
      • Vírus da hepatite B e C
      • HSV
      • Vírus da imunodeficiência humana (VIH)
      • Parvovírus
      • Vírus da rubéola
      • Vírus da varicela zoster (VZV, pela sigla em inglês)
      • EBV (em indivíduos imunocomprometidos)
    • Fungos:
      • Candida spp.
      • Malassezia spp.
    • Protozoários:
      • Espécies de Plasmodium
      • Toxoplasma gondii
      • Trypanosoma cruzi
  • Lactentes e crianças:
    • E. coli
    • S. aureus
    • S. pneumoniae
    • H. Influenza tipo b
    • Neisseria meningitidis
    • Salmonela spp.
    • Vírus

Fisiopatologia

A capacidade do hospedeiro de resistir ao dano direto causado pelo patogénio e a resposta do sistema imune, determinam a evolução para o controlo da infeção ou para sépsis.

  • Reconhecimento antigénico → início da resposta imune inata → secreção de citocinas → ativação do complemento, do fator de ativação plaquetária, do ácido araquidónico e das vias inflamatórias, bem como libertação de NO
  • Ativação dos fatores da coagulação e fibrinólise → CID (coagulação intravascular disseminada)
  • Inflamação sistémica → vasodilatação generalizada com má perfusão orgânica metabolismo anaeróbio → acidose lática
  • ↓ Perfusão → síndrome de disfunção multiorgânica
  • Vasodilatação generalizada → hipovolemia relativa e, eventualmente, choque distributivo

Apresentação Clínica

Inespecífica

  • Dificuldade na alimentação
  • Alteração do comportamento
  • Letargia
  • Alteração do estado mental
  • ↑/↓ FC
  • Hipotensão
  • Instabilidade térmica

Específica de um sistema orgânico

  • Circulatório
    • Má perfusão:
      • Palidez e cianose
      • ↑ Preenchimento capilar
      • Edema
      • Desidratação
    • Choque séptico:
      • Choque “quente”:
        • Preenchimento capilar instantâneo
        • Pulsos palpáveis e aumentados (pressão de pulso ampla)
        • Extremidades quentes
      • Choque “frio”:
        • ↓ Preenchimento capilar (> 2 segundos)
        • ↓ Pulso
        • Extremidades frias
        • Mais comum na pediatria
  • Digestivo:
    • Vómitos/diarreia
    • Distensão abdominal
    • Hepatomegalia
  • Respiratório:
    • ↑/↓ FR
    • Tiragem
    • Gemido
    • Adejo nasal
    • Dispneia
    • Cianose
    • Hipóxia (saturação < 90%)
  • Urológico:
    • Oligúria
    • Anúria
  • Neurológico:
    • Crises epiléticas ou tremores
    • Apatia
    • Irritabilidade
    • Letargia
    • Hipo/hipertonia
    • Hiperreflexia
    • Fontanela abaulada
    • Reflexo de Moro anormal
    • Respiração irregular
    • Choro agudo
  • Hematológico:
    • Icterícia
    • Hepatoesplenomegalia
    • Hemorragia
  • Dermatológico:
    • Manchas
    • Petéquias
    • Púrpura

Evolução clínica da sépsis neonatal

Tabela: Evolução clínica da sépsis neonatal
Fase inicial Fase séptica Fase tardia
  • Mau estado geral.
  • Dificuldade na alimentação
  • Letargia
  • Taquicardia inexplicável
  • Sintomas gastrointestinais
  • Sintomas respiratórios
  • Sinais neurológicos
  • Sintomas urológicos
  • Colapso circulatório
  • Sinais hematológicos

Diagnóstico

Avaliação laboratorial

  • Hemograma:
    • ↑/↓ Contagem de leucócitos
    • ↓ Contagem de plaquetas
    • ↑ Blastos
  • Eletrólitos:
    • ↓ Na
    • ↓/↑ K
    • ↓ Fósforo
    • ↓ Glicose por ↑ das necessidades metabólicas e ↓ da ingestão calórica
    • Creatinina sérica e BUN: azotemia pré-renal por LRA
  • Gases sanguíneos:
    • Acidose metabólica
    • ↑ Ácido lático: forte preditor da mortalidade
    • Hipoxemia
  • Bilirrubina total:
    • ↑ (> 4 mg/dL) ALT
    • O ↑ das transaminases pode ser indicativo da presença de disfunção hepática, ou de infeção pelo HSV ou enterovírus
  • Hemoculturas x 2 para a identificação do agente causador
  • PT, PTT e INR por distúrbios na coagulação
  • ↓ Fibrinogénio
  • ↑ D-dímero: CID
  • Urinálise e cultura

Imagiologia diagnóstica

  • Radiografia de tórax: na suspeita de pneumonia ou sobrecarga de fluidos
  • Ecografia ou tomografia computadorizada do abdómen: +/- se a etiologia for desconhecida
  • TC de crânio: em indivíduos com coagulopatia e alteração do estado mental

Tratamento e Prevenção

Tratamento

  • Inicia-se com a estabilização do indivíduo
  • Objetivos do tratamento dirigido:
    • Acesso IV em 5 minutos
    • Ressuscitação volémica em 30 minutos
    • Antibioterapia de largo espectro em 60 minutos
    • Infusão inotrópica dentro de 60 minutos (no choque refratário a fluidos)
    • Reavaliação periódica de:
      • Pulsos centrais e periféricos
      • Perfusão cutânea (preenchimento capilar e temperatura da pele)
      • Estado volémico
      • Débito urinário (> 1 mL/kg/hora)
      • Pressão arterial sistólica
      • Estado mental
      • Níveis séricos de lactato
      • Saturação venosa central de oxigénio (ScvO₂)
  • Objetivos da ressuscitação:
    • Pressão arterial média > 65 mmHg
    • Débito urinário > 0,5 mL/kg/hora
    • Pressão venosa central (PVC) 8–10 mmHg
    • ScvO₂ > 70% ou SvO₂ > 65%
  • Opções terapêuticas:
    • Soluções IV isotónicas: bólus inicial de 20 cc/kg em crianças mais velhas, na ausência de patologia renal ou cardíaca
    • Vasopressores (por exemplo, noradrenalina, adrenalina)
    • Tratamento inotrópico (por exemplo, adrenalina, dopamina)
    • Cálculo da taxa de infusão: dose/volume de diluição/peso da criança/tempo de infusão

Antibioterapia

  • Deve ser iniciada o quanto antes.
    • Na 1ª hora de apresentação (golden hour)
    • Depois da obtenção de amostras para cultura
  • Inicialmente com antibióticos empíricos de largo espectro; com ajuste após a obtenção dos resultados das culturas e antibiogramas
  • Fatores a considerar:
    • Idade
    • História clínica
    • Comorbilidades
    • Situação clínica
    • Tipo de infeção
    • Resultados da coloração de Gram
  • Opções de antibioterapia:
    • <28 semanas: ampicilina (50 mg/kg) ou vancomicina (15 mg/kg) + cefotaxima (100 mg/kg) + gentamicina (2,5 mg/kg) e aciclovir (20 mg/kg) na suspeita de infeção por HSV
    • > 28 semanas:
      • Vancomicina (15 mg/kg) + ceftriaxona (75 mg/kg) ou cefotaxima (100 mg/kg)
      • Na imunossupressão: vancomicina (15 mg/kg) + cefepima (75 mg/kg) ou meropenem (20 mg/kg)
    • Nas crianças que não podem realizar penicilina: vancomicina (15 mg/kg) + meropenem (20 mg/kg) ou aztreonam (90–120 mg/kg/dia) + clindamicina (40 mg/kg)
    • Nas crianças com infeções fúngicas: anfotericina B + caspofungina

Prevenção

  • Cumprir o calendário vacinal para prevenir infeções.
  • Limitar a utilização de cateteres invasivos.
  • Rastreio dos potenciais patogénios durante a gravidez e tratamento antes do nascimento.
  • Pesquisar a presença de colonização por Streptococcus grupo B às 35-37 semanas de gestação, através de uma zaragatoa retovaginal, bem como realizar uma avaliação serológica para:
    • VIH
    • Sífilis
    • Antigénio de superfície da hepatite B
    • C. trachomatis
    • N. gonorrhea
    • Nas mulheres de alto risco, rastreio de anticorpos contra a hepatite C

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Diagnóstico Diferencial

  • Meningite pediátrica: inflamação das meninges, que pode ser fatal. Múltiplos microrganismos são responsáveis pela meningite. Os sintomas variam de acordo com a idade, desde fontanelas abauladas em lactentes a rigidez da nuca em crianças mais velhas. Também podem estar presentes febre, cefaleia, letargia e vómitos. O diagnóstico é realizado através de uma punção lombar. O tratamento é com antibióticos.
  • Insuficiência da suprarrenal pediátrica: caracterizada como primária (o problema está na suprarrenal) e central (disfunção hipotálamo-hipofisária), podendo ser congénita ou adquirida. Os indivíduos afetados apresentam hipovolemia, hipoglicemia, hiponatremia e hipercalemia. O diagnóstico é confirmado através de exames laboratoriais. O tratamento é com solução salina e dextrose para regular os eletrólitos.
  • Enterocolite necrotisante: uma doença GI caracterizada pela necrose de uma parte do intestino. Comum em prematuros e recém-nascidos com mau estado geral. Os lactentes apresentam-se com dificuldade na alimentação, distensão abdominal e sinais de sépsis. Esta patologia é diagnosticada através de uma radiografia abdominal. A realização precoce do diagnóstico e da administração de antibióticos pode melhorar os resultados. Pode ser necessária uma intervenção cirúrgica.
  • Choque cardiogénico: patologia que ocorre quando há um colapso da circulação secundário ao insulto cardíaco. Os indivíduos afetados apresentam-se com taquicardia, hepatomegalia, galopes, sopros, palpação de impulsos precordiais e distensão venosa jugular. A avaliação laboratorial auxilia o diagnóstico. A radiografia de tórax e a monitorização do débito cardíaco são úteis. O tratamento envolve a manutenção da via aérea, oxigenação, ventilação e circulação.
  • Pericardite infecciosa pediátrica: infeção do pericárdio por bactérias, vírus ou fungos. Os indivíduos afetados apresentam febre e toracalgia que agrava com a palpação do esterno e podem ter uma síndrome prodrómica. A pericardite infecciosa pediátrica pode provocar um derrame pericárdico ou tamponamento cardíaco e morte. A avaliação laboratorial e imagiológica cardíacas auxiliam no diagnóstico. O tratamento envolve o controlo da dor e antibioterapia ou pericardiocentese.
  • Acidose metabólica pediátrica: distúrbio ácido-base que resulta das concentrações séricas baixas de HCO3 ou elevadas de hidrogénio. Várias etiologias podem dar origem a esta patologia, incluindo hipovolemia, ingestão de tóxicos, erros inatos do metabolismo, insuficiência cardíaca, cetoacidose diabética, insuficiência renal crónica e sépsis. A identificação e tratamento da etiologia subjacente é importante para a resolução desta patologia.

Referências

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  3. Mathias, B., Mira, J.C., Larson, S.D. (2016). Pediatric sepsis. Current Opinion in Pediatrics, 28(3), 380–387.
  4. Pasman, E.A. (2021). Shock in Pediatrics Treatment & Management: Approach Considerations, Initial Resuscitation, Glucose and Calcium Stabilization. Medscape. Retrieved August 8, 2021, from https://emedicine.medscape.com/article/1833578-treatment
  5. Rhodes, A., Evans, L.E., Alhazzani, W., Levy, M.M., Antonelli, M., Ferrer, R., Dellinger, R.P. (2017). Surviving sepsis campaign: international guidelines for the management of sepsis and septic shock. Intensive Care Medicine, 43(3), 304–377.
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  7. Sarmin, M., Afroze, F., Sharifuzzaman, Alam, T., Shaly, N.J., Ahmed, T., Chisti, M.J. (2019). Predictor of death in diarrheal children under 5 years of age having severe sepsis in an urban critical care ward in Bangladesh. Global Pediatric Health, 6, 2333794X19862716.
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  9. Wood, B.P. (2020). Necrotizing Enterocolitis Imaging: Practice Essentials, Radiography, Ultrasonography. Medscape. Retrieved August 8, 2021, from https://emedicine.medscape.com/article/411616-overview

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