Insuficiência Venosa Crónica

A doença venosa crónica (ou insuficiência venosa crónica) é um espectro de distúrbios caracterizados por dilatação venosa e/ou função venosa anormal nos membros inferiores, devido à hipertensão venosa. "Insuficiência venosa crónica" refere-se a formas mais graves de doença venosa crónica. As alterações cutâneas presentes ajudam a distinguir a insuficiência venosa crónica das formas mais leves (como varizes), que incluem a hiperpigmentação da pele, dermatite de estase, lipodermatosclerose e, mais tarde, o desenvolvimento de úlceras. O diagnóstico é baseado apenas nos achados do exame objetivo, embora a ecografia com ‘doppler’ venoso possa fornecer informações adicionais acerca da etiologia, localização e extensão da doença. A base do tratamento é a terapia de compressão. Existe também uma variedade opções cirúrgicas, incluindo ablação, escleroterapia e reparação valvular. As úlceras venosas são comuns com a progressão da doença e são muitas vezes difíceis de tratar.

Última atualização: Jan 11, 2023

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

Descrição Geral

Definição

A doença venosa crónica é um espectro de distúrbios caracterizados por dilatação venosa e/ou função venosa anormal nos membros inferiores, devido à hipertensão venosa.

Epidemiologia

  • Mulheres > Homens
  • Incidência de doença venosa crónica: até 50% dos indivíduos
  • Incidência de insuficiência venosa crónica:
    • Até 40% das mulheres
    • Até 17% dos homens
    • A incidência ↑ com a idade

Etiologia

  • Hipertensão venosa crónica
  • Causas da hipertensão venosa:
    • Obstrução: geralmente trombose venosa profunda (TVP)
    • Refluxo (fluxo de sangue venoso retrógrado):
      • Normalmente devido a incompetência valvular
      • A incompetência das válvulas pode desenvolver-se após obstrução.
  • Doença primária: apresentação sintomática sem um evento precipitante (70%)
  • Doença secundária: desenvolve-se após obstrução devido a TVP (30%)
  • Fatores de risco para insuficiência venosa crónica:
    • ↑ Idade
    • ↑ IMC
    • História familiar de doença venosa
    • Laxidão ligamentar (p.e. hérnias)
    • Ortostatismo prolongado
    • Hábitos tabágicos
    • TVP anterior
    • Síndrome de Klippel-Trenaunay
    • ↑ Nível estrogénio, incluindo gravidez

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Fisiopatologia

Hipertensão venosa

  • A TVP (obstrução) e/ou incompetência da válvula primária (refluxo) pode causar:
    • ↑ pressão venosa em veias profundas
    • ↑ pressão em veias perfurantes
    • ↑ pressão em veias superficiais
  • A disfunção endotelial do lúmen das veias é consequência da TVP.
  • A inflamação crónica do lúmen das veias leva a uma eventual remodelação do mesmo, com:
    • ↑ Colagénio Tipo 1
    • ↓ Colagénio tipo 3
    • ↓ Células musculares lisas
    • Degradação da matriz extracelular
    • ↑ Proteinases que levam ao aumento da permeabilidade.
  • A disfunção grave do lúmen aumenta o risco de TVP devido a:
    • Incapacidade do sangue ascender adequadamente (estagnação)
    • Inflamação crónica/dano endotelial
Varizes

Varizes

Imagem: “Varicose veins” por National Heart Lung and Blood Institute. Licença: Public Domain

Alterações na pele e tecidos moles

  • O aumento da hipertensão venosa está associado ao aumento da permeabilidade do vaso.
  • Isto leva a um efluxo de componentes sanguíneos para o espaço subcutâneo:
    • Fluido → edema → ↑ pressão na extremidade, o que pode levar a:
      • Necrose
      • Drenagem linfática incapacitada → maior retenção de fluidos e remoção de resíduos prejudicada
    • Hemácias (que sofrem lise) → depósitos de hemossiderina → pigmentação cutânea
    • Proteinases → úlceras cutâneas
    • Leucócitos → libertação de citocinas → fibrose subcutânea (lipodermatosclerose) → ↓ capilares nestas áreas:
      • Placas brancas (“atrophie blanche”)
      • ↓ Fluxo sanguíneo → má cicatrização e isquemia/necrose

Apresentação Clínica

O espectro de doença venosa crónica

  • Dilatação venosa assintomática
  • Doença leve:
    • Telangiectasias
    • Veias reticulares
    • Varizes
    • Edema ligeiro do tornozelo
  • Doença grave (insuficiência venosa crónica):
    • Edema significativo
    • Alterações cutâneas
    • Úlceras

Apresentação dos sintomas

  • Edema posicional
  • Dor ou desconforto nos membros inferiores
    • Muitas vezes descritas como “pernas pesadas”, dolorosas ou com cãibras.
    • Agrava com o ortostatismo
    • Em contraste com a doença arterial periférica (DAP), a dor melhora com:
      • Elevação das pernas
      • Caminhada
  • Sensação de adormecimento ou formigueiro
  • Prurido
  • Veias tortuosas visíveis:
    • Telangiectasias: vénulas intradérmicas dilatadas < 1 mm
    • Veias reticulares: veias subdérmicas dilatadas, 1–3 mm de diâmetro
    • Veias varicosas: veias subcutâneas dilatadas > 3 mm de diâmetro
  • Alterações da pele:
    • Descoloração acastanhada ou azul-acinzentada da pele devido aos depósitos de hemossiderina
    • Dermatite estase (“rash” eczematoso) caracterizada por:
      • Eritema
      • Descamação
      • Exsudado
      • Erosões
      • Formação de crostas
    • Lipodermatoesclerose:
      • Áreas firmes/endurecidas
      • A pele encontra-se aderente ao tecido subcutâneo (fibrose subcutânea).
      • Mais comum na zona medial do tornozelo
      • Pode formar uma constrição à volta da perna afetada
    • Atrophie blanche:
      • Placas atróficas brancas com ponteado hematínico ou telangiectasias
      • Circular ou estrelado
      • Hiperpigmentação circundante
    • Úlceras: comummente no maléolo medial

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Diagnóstico e Classificação

Exame objetivo

Extremidades inferiores:

  • Edema
  • Veias tortuosas superficiais visíveis ou palpáveis
  • Alterações nas características da pele
  • +/- Úlceras

Tempo de preenchimento venoso:

  • Observe o tempo que leva para que as veias visíveis se distendam após o doente se sentar.
  • O tempo de preenchimento de 20–40 ou < 20 segundos é anormal.

Índice tornozelo-braço:

  • Índice tornozelo-braço = relação entre a pressão arterial do tornozelo e a pressão arterial do braço
  • Índice tornozelo-braço≤ 0.9 → DAP (doença arterial periférica)
  • Importante: A terapêutica de compressão (padrão em insuficiência venosa) está contraindicada na DAP.

Imagiologia

Ecografia com Doppler:

  • Exame de 1ª linha para:
    • Confirmação do diagnóstico (se for necessário)
    • Determinar a etiologia
    • Exclusão de TVP
    • Avaliar a gravidade da doença venosa profunda
    • Localizar e descrever a anatomia do local afetado
  • Combina:
    • Avaliação (modo B) das veias profundas e superficiais
    • Avaliação Doppler do fluxo sanguíneo
  • Uma obstrução evidencia:
    • Ausência de fluxo sanguíneo
    • Veias não compressíveis
  • Refluxo caracteriza-se por:
    • Inversão do fluxo sanguíneo
    • > 0.5 segundos em veias superficiais e perfurantes
    • > 1 segundo em veias profundas

Venografia com TC ou RM:

  • Utilizada para avaliar o sistema venoso profundo, de difícil acesso por ecografia (por exemplo, área infrainguinal)
  • Considerar em doentes com ecografia normal ou duvidosa

Venografia com contraste (invasiva):

  • Exame “Gold standard”
  • Raramente necessário para obter o diagnóstico
  • Utilizado antes de uma intervenção mais invasiva

Classificação clínica, etiológica, anatómica e fisiopatológica (CEAP, pela sigla em inglês) da doença venosa crónica

  • Sinais clínicos:
    • C0: sem doença visível ou palpável
    • C1: telangiectasias e veias reticulares
    • C2: veias varicosas
    • C3: edema
    • C4: alterações da pele
      • C4a: hiperpigmentação ou dermatite de estase (“rash” eczematoso)
      • C4b: lipodermatoesclerose
    • C5: úlcera cicatrizada
    • C6: úlcera ativa
    • C6R: úlcera ativa recorrente
  • Sinais etiológicos:
    • Ep: causas primárias, geralmente degeneração das válvulas que causam refluxo sanguíneo
    • Es: causas secundárias, geralmente TVP ou trauma
    • Ec: causas congénitas
  • Sinais anatómicos:
    • As: veias superficiais (dentro do tecido subcutâneo)
    • Ad: veias profundas (dentro dos compartimentos musculares unidos pela fáscia)
    • Ap: veias perfurantes (veias que se unem superficialmente a veias profundas atravessando a fáscia muscular)
  • Sinais fisiopatológicos:
    • Pr: refluxo venoso (fluxo retrógrado)
    • Po: obstrução venosa (trombose)
    • Pr,o: ambos (refluxo + obstrução)
Espectro de manifestações clínicas de doenças venosas crónicas

Espectro da doença venosa crónica:
A extensão da doença pode ser classificada de C1 a C6, com base nas seguintes manifestações:
a: veias reticulares/ aranhas vasculares (C1)
b: veias varicosas (varizes) (C2)
c: edema e hiperpigmentação da pele (C4)
d: lipodermatoesclerose (C4)
e: úlcera cicatrizada (C5)
f: úlcera venosa ativa (C6)

Imagem: “Spectrum of chronic venous disease” por Eva Ellinghaus et al. Licença: CC BY 4.0

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Tratamento

Objetivos

  • Reduzir o edema.
  • Reduzir o desconforto.
  • Prevenir e tratar as manifestações cutâneas.
  • Cicatrização de úlceras.
  • Melhorar os fatores de risco modificáveis.

Tratamento conservador (não cirúrgico)

  • Elevação frequente das pernas (30 minutos, 3-4 vezes por dia) → melhorar a drenagem venosa
  • Exercício → melhora o fluxo sanguíneo através do uso dos músculos da perna (“calf muscle pump”)
  • Perda de peso → ↓ pressão
  • Cuidados com a pele:
    • Limpeza
    • Emolientes:
      • Para manter a barreira da pele
      • Prevenir secura e aparecimento de fissuras
      • ↓ Coceira (pode levar a úlceras)
  • Terapêutica de compressão (meias):
    • Tratamento inicial primário
    • Contraindicada se DAP existente
    • Necessária adesão a longo prazo
  • Substâncias venoactivas para ↑ tónus venoso:
    • Usado em doentes com:
      • Edema resistente apesar da terapêutica de compressão
      • Contraindicações à terapêutica de compressão
    • Opções disponíveis nos Estados Unidos:
      • Escina (extrato de semente de castanha)
      • Fração flavonóica purificada micronizada

Tratamento de úlceras

  • Desbridamento:
    • Consiste na remoção do tecido necrótico circundante
    • Promove o crescimento de tecido de granulação saudável
    • Melhora a re-epitelização
    • ↓ Risco de infecção
    • Pode ser realizado por métodos cirúrgicos, enzimáticos ou biológicos.
  • Agentes tópicos (a maioria não acelera a cura):
    • Cadexómero de iodo
    • Sulfadiazina de prata
    • Evitar a utilização de antissépticos tópicos.
  • Antibióticos sistémicos: usados apenas em doentes com celulite aguda ou úlcera infetada
  • Cuidados de penso
  • Tratamento médico para o tratamento de úlceras resistentes:
    • Estanozolol: um esteroide anabolizante que estimula a fibrinólise
    • Pentoxifilina: ↑ microcirculação e oxigenação de tecidos

Tratamento cirúrgico

Objetivos:

  • Oclusão ou remoção de vasos danificados e restauração do fluxo sanguíneo adequado
  • Diminuição da hipertensão venosa para reduzir o edema e os efeitos na pele

As opções incluem:

  • Ablação venosa superficial (ablação térmica)
  • Escleroterapia (injeção de substâncias tóxicas que causam fibrose e oclusão)
  • Flebotomia (excisão da veia)
  • Angioplastia e colocação de “stent” (aliviar obstruções nas veias profundas)
  • Reparação válvular (veias profundas)

Complicações

  • Hemorragia de veias varicosas
  • TVP
  • Tromboflebite superficial:
    • Inflamação no lúmen das veias → trombose
    • Tratamento:
      • AINEs
      • Terapêutica de compressão
  • Celulite ou úlceras infetadas:
    • Necessitam de tratamento com antibioterapia sistémica e desbridamento
    • Pode ser necessário recorrer à amputação

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Diagnóstico Diferencial

  • Insuficiência cardíaca: é um síndrome clínico que ocorre devido à disfunção da bomba cardíaca, levando a uma redução na perfusão dos tecidos e congestão no sistema venoso. A insuficiência cardíaca pode ser distinguida da insuficiência venosa crónica pela presença de dispneia, distensão venosa jugular e auscultação de S3. O diagnóstico é feito através da junção de achados clínicos, laboratoriais e imagiológicos, sendo o tratamento adequado a otimização médica.
  • Cirrose: fibrose progressiva e insuficiência hepática, que leva à hipertensão portal. Esta, por sua vez, pode causar congestão venosa distal, o que resulta em ascite, varizes gástricas e esofágicas e edema periférico. Podem também surgir telangiectasias. Os sintomas incluem ainda icterícia, hemorragia gastrointestinal, sintomas neurológicos e distúrbios de coagulação. O tratamento é, na sua maioria, de suporte, com o objetivo de reduzir as complicações.
  • Síndrome Nefrótico: O dano a podócitos renais levam a proteinúria maciça, que resulta em edema periférico significativo, assemelhando-se à doença venosa crónica. Está também associado a um estado hipercoagulabilidade devido à perda urinária de antitrombina III, podendo ocorrer episódios de TVP. A biópsia renal dá um diagnóstico definitivo. O tratamento dirige-se sobretudo para a causa subjacente.
  • DAP: a aterosclerose leva à diminuição do fluxo sanguíneo nas artérias periféricas, geralmente nos membros inferiores. A aterosclerose resulta em claudicação (dor induzida pelo exercício e que alivia com repouso). A diminuição do fluxo sanguíneo arterial na DAP pode também levar ao desenvolvimento de úlceras secundárias à isquemia. O diagnóstico é clínico e apoiado por exames de imagem vasculares. O tratamento é farmacológico e envolve também a revascularização cirúrgica.
  • Carcinoma de células pavimentosas/espinocelular (CCS): tumor maligno proveniente de queratinócitos epidérmicos, geralmente em áreas expostas ao sol. Estes carcinomas podem formar placas eritematosas, descamativas, bem delimitadas, que podem assemelhar-se a alterações inflamatórias da pele. O diagnóstico é realizado através de uma biópsia. Os carcinomas espinocelulares podem também surgir em úlceras venosas crónicas. O tratamento adequado é a excisão cirúrgica da lesão.

Referências

  1. Creager, M. A., Loscalzo, J. (2008). Vascular disorders of the extremities. In Fauci, A. S., Braunwald, E., Kasper, D.L., et al. (Eds.) Harrison’s Internal Medicine (17th ed., p. 1574).
  2. Kabnick, L. S., Scovell, S. (2020). Overview of lower extremity chronic venous disease. In Collins, K. A. (Eds.) UpToDate. Retrieved February 14, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/overview-of-lower-extremity-chronic-venous-disease
  3. Mathes, B. M. (2019). Clinical manifestations of lower extremity chronic venous disease. In Collins, K. A. (Ed.) UpToDate. Retrieved February 14, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/clinical-manifestations-of-lower-extremity-chronic-venous-disease
  4. Moneta, G. (2020). Classification of lower extremity chronic venous disease. In Collins, K. A. (Ed.) UpToDate. Retrieved February 14, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/classification-of-lower-extremity-chronic-venous-disorders
  5. Alguire, P. C., Mathes, B. M. (2019). Diagnostic evaluation of lower extremity chronic venous insufficiency. In Collins, K. A. (Ed.) UpToDate. Retrieved February 14, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/diagnostic-evaluation-of-lower-extremity-chronic-venous-insufficiency
  6. Mathes, B. M., Kabnick, L.S., Alguire, P. C. (2021). Medical management of lower extremity chronic venous disease. In Collins, K. A. (Ed.) UpToDate. Retrieved February 14, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/medical-management-of-lower-extremity-chronicvenous-disease
  7. Patel, S. (2020). Venous insufficiency. In Surowiec S. (Ed.) StatPearls. Retrieved February 14, 2021, from https://www.statpearls.com/articlelibrary/viewarticle/31060/

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