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Hemofilia

As hemofilias são um grupo de doenças hereditárias, ou às vezes adquiridas, da hemostase secundária devido à deficiência de fatores de coagulação específicos. A hemofilia A é a deficiência do fator VIII, a hemofilia B a deficiência do fator IX e a hemofilia C a deficiência do fator XI. Os pacientes apresentam eventos hemorrágicos que podem ser espontâneos ou associados a traumas minor ou major. A abordagem terapêutica foca-se principalmente no tratamento de eventos hemorrágicos agudos e na prevenção de eventos hemorrágicos através da reposição de fatores em défice.

Última atualização: Jan 18, 2023

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

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Descrição Geral

Definição

As hemofilias são um grupo de doenças da hemostase secundária devido à deficiência de fatores de coagulação específicos.

Epidemiologia

Nos Estados Unidos nascem cerca de 400 crianças por ano com hemofilia.

Foram descritos 3 tipos diferentes:

  • Hemofilia A:
    • Afeta quase sempre homens (recessivo ligado ao X)
    • 1 em 5.000 homens
    • Mais comum: representa 80% de todos os casos
  • Hemofilia B:
    • Afeta quase sempre homens (recessivo ligado ao X)
    • 1 em 30.000 homens
    • Clinicamente indistinguível da hemofilia A
  • Hemofilia C:
    • Afeta igualmente homens e mulheres
    • Pode ser autossómica recessiva ou autossómica dominante dependendo da mutação específica
    • 1 em 1 milhão de homens e mulheres

Etiologia

Mutação genética que resulta em deficiência de fatores de coagulação:

  • Hemofilia A:
    • Fator VIII: mutações recessivas ligadas ao X no gene F8
    • Localizado no cromossoma X
  • Hemofilia B (doença de Christmas):
    • Fator IX: mutações recessivas ligadas ao X no gene F9
    • Localizado no cromossoma X
  • Hemofilia C:
    • Fator XI: mutações no gene F11
    • Localizado no cromossoma 4

Hemofilia adquirida:

  • O paciente desenvolveu autoanticorpos imunomediados contra proteínas de coagulação (mais frequentemente fator VIII).
  • Idiopática em 50%
  • Pode ser secundária a doenças autoimunes, como lúpus, artrite reumatoide, esclerose múltipla, síndrome de Sjögren e doença inflamatória intestinal
  • Outras condições predisponentes incluem trauma major e gravidez.

Fisiopatologia

Genética

  • Mutações do gene F8 no cromossoma X:
    • 40%–45% dos casos graves de hemofilia A são causados por uma grande inversão da secção do intrão 22 no braço longo do cromossoma X.
    • 1%–5% dos casos graves de hemofilia A são causados por uma grande inversão da secção do intrão 1 no braço longo do cromossoma X.
    • Mutações pontuais e pequenas deleções/inserções estão presentes em aproximadamente 60% dos casos de hemofilia A, mas não há nenhuma mutação ou deleção específica predominante.
  • Mutações do gene F9 no cromossoma X:
    • Altamente heterogéneas: incluem deleções, duplicações, inserções, variantes dos locais de splicing, variantes missense e variantes nonsense
    • 40%–45% dos casos graves de hemofilia B são causados por variantes missense.
  • Mutações do gene F11 no cromossoma 4:
    • Estão reportadas > 200 variantes patogénicas distintas no gene F11.
    • A mutação missense Phe283Leu no exão 9 é responsável por uma maior prevalência entre aqueles de ascendência judaica asquenazes.
Localização do gene f8

Localização do gene F8 para o fator de coagulação VIII: Xq28, resultando em hemofilia A

Imagem: “F8 gene location” por Genome Decoration Page/NCBI.  Licença: Domínio Público

Cascata de coagulação

  • Produz um coágulo de fibrina estável no local da lesão
  • Existem duas vias de coagulação: intrínseca e extrínseca
  • As duas vias convergem para uma via comum; o resultado final é a formação de um coágulo de fibrina.
  • Os fatores Ⅷ, Ⅸ e XI são componentes da via intrínseca.
  • As deficiências de fatores resultam na disfunção da hemostase:
    • Ativação da protrombina em trombina diminuída → níveis reduzidos de trombina
    • Diminuição da formação de coágulos de fibrina → atraso da hemostase
  • A gravidade da doença é proporcional à gravidade da deficiência:
    • Ligeira: > 5% dos níveis normais
    • Moderada: 1 %–5% dos níveis normais
    • Grave: < 1% dos níveis normais
Cascata de coagulação

Cascata de coagulação

Imagem por Lecturio.

Apresentação Clínica

Manifestações

A apresentação depende principalmente na gravidade da deficiência do fator.

Deficiência ligeira a moderada:

  • Apresenta-se após trauma ou cirurgia
  • Idade média de início > 10 meses, quando a criança começa a gatinhar ou a andar
  • Hemorragia desproporcional à resposta tecidual esperada, dado o nível de trauma
  • Hemartrose (hemorragia nas articulações):
    • O derrame articular pode causar dor e ↓ amplitude de movimento.
    • Derrames repetitivos podem causar destruição articular precoce.
  • Hematoma (hemorragia no músculo):
    • Com ou sem equimoses excessivas
    • Pode levar à síndrome compartimental

Deficiência mais grave:

  • Apresenta-se na primeira infância:
    • Ao nascimento: hemorragia intracraniana ou cefalohematoma por deformação craniana devido ao trauma do parto normal
    • 1-10 dias: hemorragia prolongada após a circuncisão
    • 1-4 semanas: hemorragia do coto umbilical
  • Pode apresentar-se com hemorragia espontânea em qualquer idade
  • Hemorragias nasais e hemorragia gengival após escovar os dentes
  • SNC (hemorragia intracraniana):
    • Pode apresentar-se com alteração do estado mental, letargia, vómitos
    • Exige cuidados médicos imediatos
  • GI (hemorragia do trato GI):
    • Pode apresentar-se com hematemeses ou fezes sanguinolentas se hemorragia macroscópica
    • Pode apresentar-se com sintomas/sinais de anemia, fezes pretas se hemorragia oculta
  • Geniturinário (hemorragia do trato urinário):
    • Pode apresentar-se com hematúria se houver hemorragia macroscópica
    • Pode apresentar-se sintomas/sinais de anemia se hemorragia oculta

Complicações a longo prazo

  • Artropatia hemofílica:
    • Os componentes do sangue são cáusticos para a membrana sinovial.
    • Causa destruição progressiva da articulação, perda da amplitude de movimento
  • Infeções associadas à transfusão de hemoderivados:
    • Raro com cuidados apropriados de rastreio, que foram instituídas em 1985
    • Muitos adultos sobreviventes que receberam transfusões antes disso estão infetados com agentes patogénicos transmitidos pelo sangue
  • Desenvolvimento de autoanticorpos do fator VIII (inibidores do fator VIII) após transfusões repetidas:
    • Os pacientes desenvolvem uma “alergia” ao tratamento potencialmente life-saving → maior suscetibilidade a complicações hemorrágicas graves
    • Pode indiretamente levar a atraso no crescimento, atraso no desenvolvimento sexual

Diagnóstico

O diagnóstico de hemofilia é feito com base na suspeita clínica (geralmente devido a um evento hemorrágico) seguida pela demonstração de níveis deficitários de fatores (< 40%).

História clínica

  • A história familiar pode estar presente em ascendentes masculinos.
  • A história familiar negativa não exclui o diagnóstico.
  • Relatos de hematomas, hemorragia espontânea ou hemorragia desproporcional a um determinado trauma
  • Relatos de hemartrose, hematúria, hematemese, etc.

Exame objetivo

  • Equimoses
  • Hemartroses
  • Hematomas

Avaliação laboratorial

  • Hemograma:
    • Hemoglobina/hematócrito normais a diminuídos dependendo da existência de hemorragia oculta ou macroscópica
    • Contagem normal de plaquetas
  • Estudos de coagulação:
    • Tempo de hemorragia normal
    • TP normal
    • aPTT elevado: via intrínseca
    • Níveis séricos baixos de fator VIII, IX ou XI (o fator será < 40% do intervalo normal)
    • Medir o fator de von Willebrand (FvW) se os níveis de fator VIII estiverem baixos para excluir a doença de von Willebrand
  • Testes genéticos:
    • O teste genético não é necessário para diagnosticar a hemofilia.
    • Geralmente reservado para parentes de primeiro grau do sexo feminino para fins de planeamento familiar/aconselhamento genético
  • Imagiologia:
    • TC do cérebro: avaliar hemorragia intracraniana
    • TC de abdómen: avaliar hemorragia/hematoma retroperitoneal
    • Ecografia abdominal: avaliar hemorragia/hematoma retroperitoneal
    • Ecografia articular: avaliar edema articular/hemartrose

Tratamento

Considerações gerais

  • Aconselhamento genético
  • Planeamento cirúrgico e/ou obstétrico cuidadoso
  • Evitar desportos de contacto.
  • Evitar fármacos que interfiram na função plaquetária (aspirina, AINEs).
  • Tratamento da dor em casos selecionados

Correção crónica profilática da deficiência em pacientes com deficiência grave

  • Infusões crónicas do fator deficiente para manter níveis acima do intervalo crítico:
    • 2–3 transfusões/semana (embora estejam disponíveis formulações com ação mais longa)
    • O objetivo é manter os níveis > 1%.
    • Concentrado de fator VIII recombinante para hemofilia A
    • Concentrado de fator IX recombinante para hemofilia B
    • Concentrado de Fator XI ou plasma fresco congelado (PFC) para hemofilia C
  • Desmopressina para hemofilia A ligeira: A desmopressina aumenta a libertação endotelial do fator VIII, mas não do fator IX e do FvW.
  • Agentes antifibrinolíticos: ácido épsilon-amino capróico ou ácido tranexâmico para controlar a hemorragia local (hemorragia gengival ou no trato GI e durante a cirurgia oral)
  • Anticorpo monoclonal emicizumab aprovado pela Food and Drug Administration (FDA) para profilaxia da hemorragia na hemofilia A:
    • Não está associado ao desenvolvimento de inibidores do fator VIII
    • Cobertura limitada por terceiros pagadores, custo e disponibilidade limitada restringem o uso.

Episódios de hemorragia aguda

  • Transfusão imediata do fator deficiente:
    • Concentrado de fator VIII recombinante para hemofilia A
    • Concentrado de fator IX recombinante para hemofilia B
    • Concentrado de fator XI ou PFC para hemofilia C
  • Cotransfusão com concentrado eritrocitário no cenário de instabilidade hemodinâmica

Avaliação/intervenção cirúrgica

  • Hemorragia intracraniana
  • Síndrome do compartimento
  • Desbridamento/recessão alargada/evacuação de hematoma
  • Artrocentese, substituição articular

Prognóstico

  • A hemofilia grave resulta numa esperança de vida limitada.
  • Disponibilidade de concentrados de fatores → melhoria dramática na esperança e na qualidade de vida
  • A esperança de vida para pacientes com hemofilia nascidos após 1985 é de cerca de 65 anos.
  • A causa mais comum de morte é a insuficiência hepática.
  • As complicações da infeção por VIH e hepatite C continuam a ser a causa mais importante de morte em pacientes nascidos antes de 1985.

Diagnóstico Diferencial

  • Insuficiência hepática: o fígado é o local de síntese dos fatores de coagulação; assim, um fígado disfuncional resulta em deficiência dos fatores de coagulação. A insuficiência é diagnosticada clinicamente num cenário de doença hepática com confirmação da natureza da diátese hemorrágica através de exames laboratoriais. O tratamento visa controlar a hemorragia, repor os fatores de coagulação deficientes e tratar a causa subjacente da doença hepática.
  • Deficiência de vitamina K: a vitamina K é necessária para a ativação dos fatores de coagulação II, VII, IX e X; assim, uma deficiência leva à inativação destes fatores e apresenta-se com complicações hemorrágicas. O diagnóstico é feito com exames laboratoriais que demonstram baixos níveis de vitamina K e deficiência de fatores de coagulação associados a jusante. O tratamento visa controlar a hemorragia e corrigir a deficiência de vitamina K e/ou fatores de coagulação deficientes.
  • Coagulação intravascular disseminada (CID): a coagulação intravascular disseminada, um desequilíbrio entre fatores pró-trombóticos e antitrombóticos nativos, é uma complicação de muitas doenças. Um evento desencadeante causa trombose generalizada (esgotando as reservas de fatores de coagulação disponíveis) seguida de hemorragia descontrolada. Tem alta morbilidade e mortalidade e, portanto, requer intervenção ao nível dos cuidados intensivos. O tratamento visa o controlo da hemorragia, a ressuscitação para manter a estabilidade hemodinâmica e o tratamento do evento desencadeante.
  • Púrpura trombocitopénica trombótica (PTT): um distúrbio devido a uma deficiência na metaloproteinase responsável pela quebra do FvW, que pode ser congénita ou adquirida. A púrpura trombocitopénica trombótica é um diagnóstico diferencial juntamente com a púrpura trombocitopénica idiopática (PTI) e a CID, apresentando-se todas com trombocitopenia. A púrpura trombocitopénica trombótica é mais aguda do que a hemofilia e requer plasmaférese urgente.
  • Púrpura de Henoch-Schönlein: uma vasculite autoimune de pequenos vasos: a púrpura de Henoch-Schönlein geralmente apresenta-se como uma tétrade de dor abdominal, artralgia, erupção purpúrica e hematúria. A doença é diagnosticada clinicamente e tratada sintomaticamente.
  • Doença de von Willebrand: um distúrbio hemorrágico autossómico hereditário que se pode apresentar com hemorragia ligeira a moderada em qualquer idade: O diagnóstico é feito pela demonstração da deficiência de FvW numa análise laboratorial. O tratamento é feito com controlo da hemorragia e administração de desmopressina e antifibrinolíticos.

Referências

  1. Hoots W, Shapiro A. (2020). Hemophilia A and B: Routine management including prophylaxis. Retrieved March 6, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/hemophilia-a-and-b-routine-management-including-prophylaxis
  2. Hoots W, Shapiro A, Heiman M. (2021). Genetics of hemophilia A and B. Retrieved March 6, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/genetics-of-hemophilia-a-and-b
  3. Bérubé C. (2021). Factor XI (eleven) deficiency. Retrieved March 6, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/factor-xi-eleven-deficiency
  4. Kasper D, Fauci A, Hauser S, Longo DL, Jameson J, Loscalzo J. (2012). Harrison’s Principles of Internal Medicine (18th ed.). New York: McGraw Hill Education, pp. 2180–2186.
  5. Duga S, Salomon O. (2013). Congenital factor XI deficiency: An update. Seminars in Thrombosis Hemostasis 39(6):621–631.

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