Cryptococcus/Criptococose

A criptococose é uma infeção fúngica oportunista causada pela espécie Cryptococcus. Os principais agentes patogénicos em humanos são o C. neoformans (primário) e o C. gattii. O Cryptococcus neoformans é tipicamente encontrado nos excrementos dos pombos e adquirido pela inalação de poeira de solo contaminado. A maioria dos doentes afetados são imunocomprometidos. Os doentes com SIDA, utilização crónica de corticoides e transplante de órgãos são particularmente afetados. O principal fator de virulência é uma cápsula antifagocítica, constituída por antigénios capsulares polissacarídeos repetidos. A infeção afeta geralmente os pulmões e apresenta-se como uma lesão primária ou pneumonia. Pode ocorrer disseminação envolvendo o cérebro e as meninges, a pele, os ossos e os órgãos viscerais. O tratamento da meningite criptocócica é habitualmente a anfotericina B e a flucitosina, seguidas de fluconazol. A criptococose é uma doença definidora de SIDA e normalmente está associada a uma contagem de CD4< 100 células / μL.

Última atualização: Apr 7, 2023

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

Características Gerais do Cryptococcus

Características

  • Morfologia: levedura redonda ou oval, fortemente encapsulada (não dimórfica)
    • 5–10 µm de diâmetro
    • Espessura variável da cápsula: pode ser > 50% do diâmetro da levedura
  • Características:
    • Aeróbico obrigatório
    • Urease positivo
    • Pode ser visualizado com tinta da China (nanquim), com prata metenamina e com mucicarmina.

Espécies clinicamente relevantes

  • O género Cryptococcus inclui mais de 50 espécies.
  • Apenas o C. neoformans e o C. gattii são patogénicos em humanos.
  • O C. neoformans é o principal agente patogénico deste género.

Formas de doença

  • Criptococose pulmonar
  • Meningite criptocócica
  • Criptococose cutânea
  • Outras formas (menos comuns):
    • Osteomielite
    • Criptococose ocular
    • Pielonefrite
    • Endocardite
    • Hepatite
    • Sinusite

Epidemiologia

Incidência

  • A incidência de criptococose aumentou consideravelmente entre 1981–1992 devido à epidemia de SIDA.
  • O desenvolvimento e a utilização dos corticosteroides, juntamente com a melhoria das taxas de sobrevivência dos doentes por doenças malignas, contribuíram também para o aumento da incidência.
  • Taxa de incidência global: 1 milhão anualmente
  • A maioria dos casos relatados têm sido em doentes com SIDA:
    • Aproximadamente 7% – 15% dos doentes com SIDA desenvolvem infeções criptocócicas
    • A incidência diminuiu nos últimos 20 anos devido aos avanços no tratamento antirretroviral.

Morbilidade e mortalidade

  • Cerca de 625.000 mortes por ano em todo o mundo
  • A utilização de anfotericina B melhorou drasticamente o prognóstico dos doentes.
  • Taxa de mortalidade de 14% com anfotericina B + flucitosina

Patogénese

Processo de infeção

  • Habitat:
    • Amplamente encontrado em solo contaminado com excrementos antigos de pássaros.
    • Também encontrado na madeira em decomposição e em cavidades nas árvores
  • Transmissão: os esporos das leveduras são inalados a partir de solo contaminado.
  • Patogenicidade e processo de doença:
    • Os esporos são depositados nos alvéolos pulmonares → fagocitados por macrófagos
    • A cápsula polissacarídica criptocócica impede o reconhecimento no interior dos macrófagos → impede a migração dos leucócitos
    • O glucuronoxilomanano e o glucuronoxilomanogalactano (conhecidos juntos como GXM):
      • São componentes da cápsula
      • Altamente imunossupressores
    • O C. neoformans e o C. gattii também produzem fenol oxidase:
      • ↑ Produção de melanina
      • A melanina acumula-se na parede celular e impede os ataques do sistema imunológico do hospedeiro.
  • Indivíduos saudáveis: a infeção costuma ser autolimitada.
  • Imunocomprometidos:
    • O local inicial é infetado e, de seguida, espalha-se via disseminação hematogénica
    • Se for contida, pode ocorrer reativação no local inicial, posteriormente, por declínio do estado imunológico.

Fatores de risco do hospedeiro

O fator de risco mais importante para infeção é um estado imunocomprometido. As seguintes condições estão frequentemente associadas à infeção, em frequência decrescente:

  • VIH e SIDA
  • Uso crónico de corticosteroides
  • Transplante de órgão
  • Neoplasias malignas
  • Doença hepática
  • Sarcoidose

Apresentação Clínica

Achados gerais

A apresentação clínica varia de acordo com a área afetada e com o estado imunológico do hospedeiro:

  • Nos indivíduos imunocompetentes, a infeção costuma ser assintomática e autolimitada.
  • Os pulmões são mais frequentemente infetados, seguidos pelo SNC.
  • A infeção disseminada pode afetar outras partes do corpo.

Criptococose pulmonar

  • O padrão pode ser altamente variável: até 30% dos indivíduos imunocompetentes são assintomáticos.
  • Sintomas leves a moderados:
    • Febre
    • Mal-estar geral
    • Tosse com expetoração escassa
    • Dor pleurítica
    • Hemoptises (raro)
  • Achados radiológicos frequentes: lesões nodulares únicas ou múltiplas
    • Bem definidas
    • Não calcificadas
  • Nos casos mais graves pode ocorrer ARDS.

Meningite criptocócica/meningoencefalite

  • Principal manifestação clínica da infeção criptocócica e o local mais comum de disseminação a partir dos pulmões
  • É a micose do SNC mais comum em doentes imunocomprometidos:
    • 90% dos casos em doentes com SIDA
    • Doença definidora de SIDA: contagem de CD4 <100 células / µL
  • Início gradual dos sintomas:
    • Desenvolve-se ao longo de semanas a meses a partir da infeção inicial
    • Cefaleia: sintoma de apresentação mais comum
    • Alteração do estado mental
    • Fotofobia
    • Alterações comportamentais
    • Náuseas e/ou vómitos
    • Rigidez da nuca
    • Défices neurológicos focais
      • Tipicamente oculares ou faciais
      • Tendem a aparecer em fases posteriores
  • Doentes imunocomprometidos:
    • Podem ter sintomas mínimos ou inespecíficos
    • A febre costuma estar ausente ou ser baixa.

Criptococose cutânea

  • Ocorre em cerca de 10% – 15% dos casos
  • Os achados cutâneos podem ser variáveis:
    • Pápulas
    • Pústulas
    • Nódulos
    • Úlceras
    • Drenagem dos seios perinasais
  • Em doentes transplantados foi descrita celulite complicada com vasculite necrotizante.
Criptococose cutânea

Criptococose cutânea: Lesões papulonodulares (algumas com crostas e centro umbilicado) na face e no dorso superior. A infeção por criptococos é confirmada nas lesões cutâneas.

Imagem: “Disseminated cryptococcosis with cutaneous involvement in an immunocompetent patient” de Gabriely Lessa Sacht et al. Licença: CC BY 4.0

Diagnóstico

Análises laboratoriais

  • Infeção fora do SNC:
    • Amostras:
      • Pulmonar: expetoração, lavado broncoalveolar, líquido pleural
      • Cutânea: amostras de pele / tecido
    • Testes:
      • Visualização das leveduras com colorações (vê-se a cápsula)
      • Cultura em ágar Sabouraud
      • Antigénio criptocócico sérico (CrAg) por aglutinação de látex, imunoensaios enzimáticos ou ensaio de fluxo lateral
  • Meningite / meningoencefalite por Cryptococcus:
    • Punção lombar precedida por neuroimagem
    • Análise e cultura do líquido cefalorraquidiano (LCR):
      • Coloração com tinta da China (nanquim) revela “halos”
      • Proteínas elevadas
      • Glicose baixa ou normal
      • CrAg positivo no LCR

Imagiologia

  • Radiografia e TC torácicas:
    • Os achados da radiografia de tórax variam de acordo com a extensão e a apresentação:
      • Nódulos
      • Consolidação
      • Cavitação
      • Infiltrados lobares
      • Adenopatia hilar
      • Derrame pleural
      • Colapso pulmonar
    • A TC pode fornecer mais detalhes pelo que está indicada na suspeita de infeção pulmonar em doentes imunocomprometidos.
  • Neuroimagem:
    • Deve ser realizada TC ou ressonância magnética cerebral antes da punção lombar.
    • É especialmente útil nos doentes com défices neurológicos focais ou papiledema (investigação de causas de aumento da pressão intracraniana)
    • A ressonância magnética é significativamente mais sensível do que a TC para detetar lesões cerebrais:
      • Lesões ocupantes de espaço únicas ou múltiplas
      • Granulomas
      • Pseudoquistos gelatinosos (ou seja, “lesões em bolha de sabão” características)

Tratamento

Princípios

  • Visto que a maioria das infeções afeta o SNC (infeção meníngea) e os pulmões (infeção pulmonar), a maioria dos esquemas terapêuticos testados foca-se nestes locais.
  • As infeções criptocócicas que não afetam o SNC ou os pulmões representam geralmente uma infeção disseminada (embora seja possível a infeção localizada).
  • As opções terapêuticas variam de acordo com o estado imunológico do hospedeiro e com o local da infeção:
    • Esquema para a infeção do SNC:
      • Indução: flucitosina + anfotericina B IV por pelo menos 2 semanas
      • Consolidação: fluconazol por 8 semanas
      • Manutenção: fluconazol (dose mais baixa) por 12 meses após o diagnóstico
    • Fluconazol: 6-12 meses
    • Estão disponíveis alternativas em determinadas populações ou situações.
  • O crescimento do fungo é monitorizado através da análise do LCR durante o tratamento da infeção do SNC.

Abordagem terapêutica

  • Imunocompetentes:
    • Pulmonar (sem infeção do SNC):
      • Sintomas pulmonares leves ou infeção focal (sem infiltrados difusos): fluconazol por 6-12 meses
      • Sintomas pulmonares graves (infiltrados pulmonares difusos): esquema da infeção do SNC
    • Infeção do SNC ou infeção disseminada (≥ 2 locais não contíguos): esquema da infeção do SNC
  • Imunocomprometidos:
    • O tratamento está indicado para todos os doentes com SIDA.
    • O tratamento antirretroviral deve ser adiado até ao tratamento criptocócico inicial (possível síndrome inflamatória de reconstituição imunológica (SIRI)).
    • Infeção pulmonar leve: fluconazol 6-12 meses
    • Infeção do SNC, doença pulmonar grave ou infeção disseminada: esquema da infeção do SNC
  • Redução da pressão intracraniana:
    • Punção lombar diária até ficar assintomático
    • Drenos lombares ou ventriculares
Tabela: Tratamento das infeções criptocócicas
Doença Tratamento
Infeção do SNC Anfotericina B + flucitosina, seguida de tratamento de consolidação e de manutenção
Imunocompetente e imunossuprimido com infeção pulmonar leve (focal) Fluconazol
Imunocompetente e imunossuprimido com infeção pulmonar grave Tratamento igual ao da infeção do SNC
Imunocompetente e imunossuprimido com infeção extrapulmonar, não do SNC (≥ 2 locais não contíguos) Tratamento igual ao da infeção do SNC

Prevenção

  • Tratamento antirretroviral para os doentes com SIDA
  • Testagem por rotina do CrAg em pessoas recém-diagnosticadas com VIH (contagens de CD4 ≤ 100 células / µL) sem sinais de meningite:
    • Teste positivo → avaliação do LCR
    • Tratar os doentes com antigénio criptocócico sérico positivo isoladamente, sem meningite, como uma infeção pulmonar focal.
    • Não está recomendada a profilaxia antifúngica primária por rotina em doentes CrAg negativos, independentemente da contagem de CD4:
      • O benefício na sobrevivência com a profilaxia é incerto
      • Possíveis interações medicamentosas
      • Potencial para desenvolvimento de resistência a fármacos

Diagnósticos Diferenciais

  • Infeções fúngicas oportunistas: grupo de infeções que ocorrem em doentes com sistema imunológico enfraquecido (especialmente contagens de CD4< 200 células / μL). Estas infeções normalmente não causam doença nos doentes saudáveis com um sistema imunológico normal. Os sinais e sintomas gerais podem ser semelhantes aos da criptococose. A microscopia e a cultura da expetoração ou do lavado broncoalveolar permitem a identificação dos organismos específicos, ajudando na diferenciação.
  • Tuberculose (TB): doença infeciosa causada por bactérias do complexo Mycobacterium tuberculosis. Tal como o Cryptococcus, esta bactéria infeta habitualmente os pulmões, mas também se pode disseminar para outras partes do corpo. Ambos estão associados a um período de latência e podem apresentar sinais e sintomas semelhantes. Investigar uma história de exposição a um ambiente com prevalência elevada de TB (por exemplo, serviços de saúde, centro de acolhimento para sem-abrigo). Uma contagem de CD4 de < 300 células / μL é normalmente associada a TB versus < 200 células / μL para a criptococose. O diagnóstico é estabelecido com um teste cutâneo de tuberculina, análises de sangue, cultura de expetoração e imagiologia pulmonar.
  • Histoplasmose: infeção causada por Histoplasma capsulatum. Tal como a criptococose, a histoplasmose é uma infeção fúngica adquirida por inalação e associada a solo contaminado e a indivíduos imunocomprometidos. Ao contrário da criptococose, a histoplasmose está associada a fezes de morcego (para além das fezes de pássaros). Os sintomas podem ser inespecíficos ou consistentes com pneumonia. A pele também pode ser afetada. O diagnóstico pode ser feito por cultura de fungos ou por teste de antigénio na urina / soro. Uma biópsia de uma lesão cutânea com cultura e histologia pode ajudar a diferenciar.
  • Blastomicose: doença pulmonar causada pela inalação de esporos de Blastomyces. Os doentes podem desenvolver pneumonia ou doença extrapulmonar disseminada. Ao contrário da criptococose, a pele é o local mais comum de disseminação. Pode existir história de exposição às regiões dos Grandes Lagos, Vale do Rio Ohio e Vale do Rio Mississippi, já que o Blastomyces é endémico nestas regiões. O diagnóstico é feito através das culturas e da imagiologia.

Referências

  1. Buchanan, K. L. & Murphy, J. W. (1998). What makes Cryptococcus neoformans a pathogen? Emerg Infect Dis 4, 71–83.
  2. Cox, G., Perfect, J. (2021). Microbiology and epidemiology of Cryptococcus neoformans infection. UpToDate. Obtido a 9 de junho de 2021, em https://www.uptodate.com/contents/microbiology-and-epidemiology-of-cryptococcus-neoformans-infection
  3. Cox, G., Perfect, J. (2021). Cryptococcus neoformans infection outside of the central nervous system. UpToDate. Recuperado a 10 de junho de 2021, em https://www.uptodate.com/contents/cryptococcus-neoformans-infection-outside-the-central-nervous-system
  4. Cox, G., Perfect, J. (2021). Cryptococcus neoformans: Treatment of meningoencephalitis and disseminated infection in HIV seronegative patients. UpToDate. Obtido a 9 de junho de 2021, em https://www.uptodate.com/contents/cryptococcus-neoformans-treatment-of-meningoencephalitis-and-disseminated-infection-in-hiv-seronegative-patients
  5. Cryptococcosis: NIH. Cryptococcosis | NIH. (n.d.). Obtido a 10 de junho de 2021, em https://clinicalinfo.hiv.gov/en/guidelines/adult-and-adolescent-opportunistic-infection/cryptococcosis?view=full.
  6. Mada, P. (2021). Cryptococcosis: Practice Essentials, Background, Pathophysiology. Medscape. Recuperado a 9 de junho de 2021, em https://emedicine.medscape.com/article/215354-overview#a1
  7. Mada, P.K., Jamil, R.T., Alam, M.U. (2020). Cryptococcus. StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK431060/
  8. Revankar, S. (2019). Cryptococcosis. Merck Manuals. Recuperado a 9 de junho de 2021, em https://www.merckmanuals.com/professional/infectious-diseases/fungi/cryptococcosis?query=cryptococcus#v36860800

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