Anomalias Renais Congénitas

As anomalias renais congénitas surgem de defeitos embriológicos/genéticos e causam uma variedade de distúrbios renais isolados ou sindrómicos, incluindo agenesia renal, disgenesia e ectopia. As anomalias renais congénitas são geralmente identificadas no período pré-natal e representam, aproximadamente, ⅓ de todas as anomalias pré-natais. Devido ao importante papel do rim fetal na produção de líquido amniótico, se detetado oligoâmnios em ultrassonografias pré-natais, geralmente, despoleta-se investigação adicional que identifica anomalias renais congénitas. O envolvimento renal unilateral, na presença de um rim contralateral funcionante, pode ser apenas um achado incidental mais tarde na vida. Em muitos casos, o tratamento é de suporte.

Última atualização: Jun 28, 2022

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

Embriologia Renal

O rim desenvolve-se na pelve e migra cranialmente. Formam-se três sistemas renais separados, em sequência, dando origem ao rim, em associação com o trato urinário e o sistema urogenital:

  • Pronefros:
    • Estrutura renal vestigial não funcional encontrada na região cervical
    • Surge na 3ª semana
    • Desaparece na 4ª semana
  • Mesonefros:
    • 4ª semana: Formam-se as unidades excretoras, compostas pelos capilares, a cápsula de Bowman e o túbulo coletor conectado aos ductos de Wolff.
    • Derivado da mesoderme intermediária, na região torácica superior até à região lombar
    • Funcional por algum tempo in útero
    • A maior parte desaparece; uma pequena porção permanece como parte do sistema renal final:
      • Funde-se com a cloaca para dar origem à bexiga
      • Nos rapazes, dá origem a uma porção do sistema genital
  • Metanefros:
    • 5ª semana: desenvolve-se caudalmente em relação ao mesonefros
    • O parênquima renal diferencia-se da mesoderme de forma semelhante ao mesonefros.
    • O sistema de dutos coletores:
      • Inicialmente aparece como um pedúnculo e um broto (blastema) derivado do ducto mesonéfrico próximo à cloaca.
      • Posteriormente forma o ureter, a pelve renal e os cálices e funde-se com o tecido metanéfrico, dando origem aos túbulos coletores.
      • As extremidades dos túbulos coletores interagem com o tecido metanéfrico → nefrónios.
      • 20ª semana: Todo o sistema coletor está formado.
      • 32ª 36ª semanas: Todas as unidades nefróticas estão formadas, mas continuam a amadurecer após o nascimento.
  • Ascensão renal:
    • Causada pelo crescimento das regiões lombar e sacral
    • O suprimento sanguíneo tem origem nas artérias que se projetam da aorta.
    • À medida que o rim sobe, surgem novas artérias, enquanto as artérias antigas desaparecem.
    • 9ª semana: O rim esquerdo está ao nível de T11-L2. O rim direito está ao nível de T12–L2/3.
3 fases do desenvolvimento renal

As 3 fases do desenvolvimento renal

Imagem por Lecturio.

Distúrbios do Parênquima Renal

Introdução

Distúrbios embriológicos renais que afetam o tamanho, a forma ou a estrutura do parênquima renal (disgenesia renal):

  • Agenesia renal: ausência de tecido renal devido a uma disrupção, durante o desenvolvimento renal embriológico
  • Hipoplasia renal: rins pequenos com um número reduzido de nefrónios funcionantes
  • Displasia renal: anomalias focais ou difusas da arquitetura do nefrónio; pode ser:
    • Não quística (displasia renal simples)
    • Displasia quística: caracterizada pela formação de quistos
      • Rins displásicos multiquísticos (MCDK, pela sigla em inglês): displasia quística que envolve todo o rim
      • Doença renal poliquística autossómica recessiva (ARPKD, pela sigla em inglês)

Agenesia renal

  • Fisiopatologia:
    • Interrupção do desenvolvimento embriológico do broto ureteral ou do blastema metanéfrico
    • A agenesia renal verdadeira inclui a ausência do ureter ipsilateral e uma vesícula hemitrígona.
    • A agenesia renal bilateral é incompatível com a vida.
  • Epidemiologia:
    • Incidência de agenesia renal unilateral : ~1 em 500–1.000 nascimentos
    • ↑ em lactentes com uma única artéria umbilical.
    • Rapazes>raparigas
    • Associações comuns incluem:
      • Rapazes: ausência do vaso deferente ipsilateral
      • Raparigas: anormalias do ducto de Müller
  • Etiologia:
    • Predisposição genética (e.g., mutações em genes responsáveis pelo desenvolvimento renal, RET e GDNF)
    • Associação a sindromes:
      • Associado a anomalias vertebrais, atrésia anal e anomalias cardíacas (VACTERL)
      • Mayer-Rokitanski-Kuster-Hauser: aplasia vaginal, anormalias uterinas
      • Síndrome de DiGeorge: defeitos do palato, anomalias cardíacas, ausência do timo
    • Fatores de risco maternos associados:
      • Diabetes materna
      • Obesidade materna
      • Idade materna jovem
      • Tabagismo materno
      • Consumo materno de etanol durante a gravidez
      • Exposição a agentes teratogénicos (e.g., ácido retinóico, cocaína)
  • Apresentação Clínica:
    • Pré-natal:
      • Os achados ecográficos na monitorização de rotina incluem oligoâmnios e ausência renal e da bexiga.
      • Testes genéticos em casos com alto índice de suspeita pré-natal
      • O rim esquerdo é o que mais frequentemente se encontra ausente.
    • Pós-natal:
      • Frequentemente descoberto durante a avaliação de outras anomalias
      • Descoberta incidental na ecografia
      • Podem ter infeções recorrentes do trato urinário (ITUs) ou hipertensão
      • A hipoplasia pulmonar, devido à diminuição de produção de líquido amniótico, pode ser um sinal.
    • Síndrome de Potter:
      • Agenesia renal bilateral, hipoplasia pulmonar resultante de oligoiâmnio
      • Anomalias faciais: olhos amplamente separados, pregas epicânticas proeminentes, nariz largo e comprimido e orelhas de implantação baixa
      • Outras anomalias: pé torto, pernas arqueadas, hérnia diafragmática, anomalias oculares (e.g., catarata, prolapso do cristalino), anomalias cardiovasculares (e.g., defeito do septo ventricular, persistência do canal arterial, tetralogia de Fallot)
      • A síndrome de Potter também pode estar associada a displasia renal quística, uropatia obstrutiva, ARPKD, hipoplasia renal e displasia medular.
  • Tratamento:
    • Crianças com rim único têm alto risco de doença renal crónica (DRC):
      • Monitorizar o rim contralateral procurando a presença de hipertrofia.
      • Acompanhamento de longo prazo para pesquisa de hipertensão e proteinúria
      • Testes de função renal
    • A evicção de despostos de contacto é controversa.

Hipoplasia renal

  • Fisiopatologia:
    • Rins pequenos (<50% do que o esperado para a idade)
    • Número de nefrónios e cálices abaixo do normal
    • Glomérulos e túbulos grandes (hipertrofia para compensar)
    • Com o tempo, os doentes desenvolvem doença renal terminal (DRT).
  • Epidemiologia:
    • Incidência de 1 em 400 nados vivos
  • Etiologia:
    • Anomalias vasculares:
      • A hipoperfusão renal in útero leva à hipoplasia.
    • Distúrbios genéticos:
      • Mais de 200 síndromes associadas
      • Mutação em genes reguladores chave no desenvolvimento renal
  • Apresentação clínica:
    • Unilateral:
      • Diagnosticado incidentalmente durante a avaliação da hipertensão ou de queixas urinárias
      • Os recém-nascidos podem apresentar défice de crescimento.
    • Bilateral:
      • História de poliúria, polidipsia e/ou anomalias urinárias
      • Desenvolvimento de DRT na 1ª década de vida
  • Diagnóstico:
    • Pré-natal:
      • Diagnosticado através da realização de ecografia de rastreio, de rotina, aos 3 meses de gestação
    • Pós-natal:
      • Ecografia renal de casos suspeitos
      • Pode ser confirmado por histologia, mas raramente é realizado
  • Tratamento:
    • Unilateral:
      • Acompanhamento periódico por ecografia e análises urinárias, para monitorizar a presença de hipertrofia compensatória do rim não afetado
    • Bilateral:
      • Pode exigir o uso de hormona de crescimento humano (rHGH, pela sigla em inglês) para permitir o crescimento adequado
      • Inibidores da enzima conversora de angiotensina (ECA) para atrasar a progressão para DRT
      • Transplante renal em doentes com doença avançada

Displasia renal

  • Epidemiologia:
    • 2-4 por 1.000 nascimentos
    • Proporção de rapazes para meninas:
      • Bilateral 1.3:1
      • Unilateral 2:1
  • Classificação:
    • Displasia renal simples
    • Displasia renal quística
  • Etiologia:
    • Principalmente devido à incorreta diferenciação do tecido renal causada por:
      • Os brotos ureterais embrionários surgem em locais incorretos, levando à diferenciação incorreta do tecido renal.
      • Uropatia obstrutiva na gestação
  • Apresentação clínica:
    • Unilateral:
      • Diagnosticada incidentalmente durante a avaliação de outro dismorfismo
    • Bilateral:
      • Descobre-se que tem insuficiência renal ao nascimento ou desenvolverá insuficiência renal pouco depois
      • Anomalias urinárias associadas levam a ITUs frequentes, hematúria e dor abdominal.
  • Diagnóstico:
    • Pré-natal:
      • Encontrada através da ecografia de rastreio, de rotina, aos 3 meses de gestação
    • Pós-natal:
      • Ecografia renal em casos suspeitos
  • Tratamento:
    • Em risco para DRC:
      • A pressão arterial deve ser monitorada de perto.
      • Urinálise anual
      • Testes de função urinária em pacientes com proteinúria/hipertensão
  • MCDK:
    • Causa mais comum de massa abdominal em recém-nascidos
    • Geralmente unilateral (a doença renal poliquística é frequentemente bilateral)
    • Se bilateral é incompatível com a vida.
    • Pode ser diagnosticado durante a ecografia pré-natal
    • Pode ser assintomático e diagnosticado incidentalmente em exames de imagem
    • A regressão completa dos quistos ocorre até aos 7 anos em metade dos casos.
    • Recomenda-se o acompanhamento anual com ecografia e monitorização da pressão arterial.

ARPKD

  • Epidemiologia:
    • A incidência varia de 1:10.000 a 1:40.000 nados vivos.
  • Etiologia:
    • Doença autossómica recessiva causada pelo gene do rim poliquístico e da doença hepática 1 (PKHD1, pela sigla em inglês)
    • Afeta: rins, pulmões e fígado; raramente, o cérebro
  • Apresentação clínica:
    • Período neonatal ou primeira infância:
      • Tipicamente apresenta-se com distensão abdominal pela presença de massas bilaterais nos flancos
      • Outras associações: hipoplasia pulmonar e dificuldades respiratórias, pneumotórax espontâneo, síndrome de Potter, hipertensão, insuficiência renal, défice de crescimento, poliúria, polidipsia, DRT
    • Bebés e crianças:
      • Normalmente têm uma apresentação mista renal-hepática
      • Frequentemente apresentam hepatoesplenomegalia, sinais de hipertensão portal (veias periumbilicais proeminentes, trombocitopenia e varizes gastroesofágicas), colangite ascendente, quistos do colédoco
      • As manifestações renais podem estar ausentes ou semelhantes às do período neonatal.
  • Diagnóstico:
    • Ultrassonografia pré-natal:
      • Oligoâmnios
      • Ausência de urina na bexiga
    • Ultrassonografia pós-natal:
      • Rins aumentados bilateralmente, uniformemente hiperecogénicos com pouca diferenciação corticomedular e múltiplos quistos
      • Hepatoesplenomegalia com fígado hiperecogénico e dilatação dos ductos biliares principais e intra-hepáticos periféricos
    • O teste genético molecular confirma o diagnóstico.
  • Tratamento:
    • Suporte ventilatório agressivo
    • Tratamento de suporte com uma equipa multidisciplinar:
      • Fármacos anti-hipertensivos (inibidores da ECA)
      • Diuréticos se edema
      • Tratamento da osteopenia
      • Nefrectomia unilateral/bilateral paliativa
      • Diálise
      • Transplante renal e/ou hepático
    • Teste genético pré-implantação, na fertilização in vitro, em famílias com história de ARPKD

Distúrbios do Posicionamento Renal

Ectopia renal e não rotação

  • Definição:
    • Ectopia renal: subida anormal dos rins durante o desenvolvimento embrionário
    • Não rotação renal: rotação anormal dos rins
  • Epidemiologia:
    • Incidência da ectopia renal: 1 em 900 nascimentos
    • Incidência da não rotação renal: 1 em 2.000 autópsias
  • Apresentação clínica:
    • Geralmente assintomático
    • Pode ter uma maior incidência de ITUs, obstrução urinária ou cálculos renais
    • O rim ectópico pode ser encontrado na pelve, no tórax ou no lado contralateral.
    • O suprimento sanguíneo é variável.
  • Diagnóstico:
    • Ecografia renal pré-natal ou pós-natal
    • Podem ser necessários cistouretrogramas miccionais (VCUG, pela sigla em inglês) e creatininas séricas seriadas se evidência de lesão renal.
Rim direito atrófico e ectópico

Homem de 24 anos com epididimite recorrente e inserção ureteral na vesícula seminal. A: Corte coronal de tomografia computadorizada (TC) a demonstrar um rim pélvico direito atrófico (círculo amarelo). B: Neste corte coronal da TC, observa-se o complexo ureteral e da vesícula seminal (elipse amarela).

Imagem: “Atrophic and ectopic right kidney” por the U.S. National Library of Medicine.  Licença: CC BY 4.0.

Fusão renal

  • Definição: fusão dos pólos inferiores dos rins (rim em ferradura)
  • Epidemiologia:
    • Incidência de 1 em 400-500 nascimentos
    • Associado à síndrome de Turner
    • O tumor de Wilms, a litíasee renal, a hidronefrose e o MCDK são mais comuns em rins em ferradura.
  • Apresentação clínica e tratamento:
    • A hidronefrose é um achado comum (80% dos casos).
    • Muitos doentes são assintomáticos e não necessitam de tratamento.

Referências

  1. Kliegman RB, ST Geme JW, Blum MJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM, & Behrman RE. (2016). Nelson’s Textbook of Pediatrics (Edition 20). Philadelphia, PA: Elsevier.
  2. Parikh CR, McCall D, Engelman C, & Schrier RW. (2002). Congenital renal agenesis: Case-control analysis of birth characteristics. Am J Kidney Dis. Apr;39(4):689-94. doi: 10.1053/ajkd.2002.31982. PMID: 11920333.
  3. Sadler, T. W., & Langman, J. (2012). Langman’s medical embryology (12th ed.). Philadelphia: Wolters Kluwer Health/Lippincott Williams & Wilkins.
  4. Hiraoka M, Tsukahara H, Ohshima Y, Kasuga K, Ishihara Y, & Mayumi M. (2002). Renal aplasia is the predominant cause of congenital solitary kidneys. Kidney Int. May;61(5):1840-4. doi: 10.1046/j.1523-1755.2002.00322.x. PMID: 11967035.

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