Síndrome Nefrítica

A síndrome nefrítica configura uma ampla categoria de doenças glomerulares caracterizada por hematúria glomerular, perda variável da função renal e hipertensão. Essas características contrastam com as da síndrome nefrótica, que inclui doenças glomerulares caracterizadas por proteinúria grave, embora às vezes exista sobreposição de > 1 doença glomerular no mesmo indivíduo. As apresentações clínicas da síndrome nefrítica são muito variáveis, desde assintomáticas com alterações urinárias até doença crítica com risco de vida. O diagnóstico é sugerido pela presença de hematúria, proteinúria leve a moderada e algumas serologias (e.g., ANCA); a biópsia renal é necessária na maioria dos casos. O tratamento varia tão amplamente quanto as apresentações clínicas, desde uma atitude vigilante em casos leves até à imunossupressão e plasmaférese na doença agressiva.

Última atualização: Jul 6, 2022

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

Descrição Geral

Definição

A síndrome nefrítica é definida por alguns ou todos os achados seguintes:

  • Hematúria glomerular: sedimento urinário ativo
    • Hemácias dismórficas
    • Cilindros hemáticos
  • Proteinúria leve a moderada (500-3500 mg/dia chamada de “subnefrótica”)
  • Hipertensão devido a:
    • Sobrecarga de volume/retenção de Na
    • Supressão do eixo SRAA
  • Azotemia:
    • Elevação do BUN
    • Razão BUN-creatinina > 15
  • Oligúria: < 500 mL de urina/dia
Microscopia de urina - hemácias normais e dismórficas

Microscopia da urina na síndrome nefrítica: 
Esquerda: eritrócito normal com aparência circular 
Direita (3 imagens): eritrócitos dismórficos com bolhas nas membranas e células “Mickey Mouse”

Imagem: “Isomorphic red blood cells (RBCs) and dysmorphic RBCs, 400×” por Chu-Su Y., et al.  Licença: CC BY 4.0, recortado por Lecturio.

Etiologia

  • Glomerulonefrite aguda (GN; apresenta LRA leve a moderada):
    • Nefropatia por IgA (também crónica)
    • GN pós-estreptocócica (GNPS)
    • Nefrite lúpica (também crónica)
    • GN membranoproliferativa (GNMP; mediada por imunocomplexo e complemento)
    • A GN rapidamente progressiva (GNRP) pode ser vista na:
      • Doença antimembrana basal glomerular (MBG) (síndrome de Goodpasture)
      • GN de complexos imunes (devido a nefrite lúpica, IgA, pós-estreptocócica, GNMP e GN pauci-imune observadas nas vasculites associadas a ANCA)
  • GN crónica (apresenta-se de 3 formas):
    • Hematúria microscópica descoberta incidentalmente +/– proteinúria leve
    • Hematúria grosseira episódica

Classificação

  • GN primário:
    • Nefropatia de IgA
    • GNMP
    • Doença anti-MBG (síndrome de Goodpasture)
  • Distúrbios hereditários:
    • Síndrome de Alport
    • Doença da membrana basal fina
  • GN secundário:
    • Causas infeciosas e pós-infeciosas:
      • Estreptococos beta-hemolítico do grupo A
      • Mycoplasma
      • Salmonella typhi
      • Infeções estafilocócicas (incluindo endocardite bacteriana)
      • Abcessos viscerais devido a bactérias Gram-negativas
      • Malária
      • Esquistossomose
      • Coxsackievírus
      • Citomegalovírus
      • EBV
      • Hepatite B e C
      • Sarampo
      • Parotidite epidémica
      • Varicela
    • Distúrbios do tecido conjuntivo: lúpus eritematoso sistémico
    • Vasculites:
      • Granulomatose eosinofílica com poliangeíte (GEPA; anteriormente, síndrome de Churg-Strauss)
      • Poliangeíte microscópica (PAM)
      • Granulomatose com poliangeíte
      • Vasculite associada a IgA, também conhecida como púrpura de Henoch-Schönlein (não é o mesmo que nefropatia por IgA)
      • Poliartrite nodosa
    • Discrasias hematológicas:
      • Crioglobulinemia mista IgG-IgM
      • Púrpura trombocitopénica trombótica-síndrome hemolítica urémica (TTP-SHU)

Fisiopatologia

Os 2 principais mecanismos de lesão glomerular nas síndromes nefríticas são a mediação por imunocomplexos e a desregulação do complemento. As formas hereditárias de GN (e.g., síndrome de Alport) têm fisiopatologias diferentes.

Anatomia e fisiologia do nefrónio

  • Barreira glomerular: estrutura de filtração do nefrónio que envolve os capilares glomerulares e inclui as 3 camadas seguintes:
    • Endotélio capilar: paredes dos vasos capilares
    • MBG: formada pelas lâminas basais do endotélio capilar e do podócito
    • Epitélio (podócitos): ligados à MBG com múltiplos processos podocitários
  • A síndrome nefrítica envolve principalmente o endotélio capilar e a MBG.
  • A síndrome nefrótica envolve principalmente a camada epitelial com podócitos.
Barreira glomerular

Diagrama da barreira glomerular:
A: Endotélio fenestrado dos capilares glomerulares
B: Membrana basal
C: Camada epitelial a mostrar os processos podocitários e as proteínas estruturais criando o diafragma em fenda

Imagem por Lecturio.

Fisiopatologia

  • Mediado por imunocomplexos:
    • Antigénio:
      • Pode ser estranho (e.g., bacteriano) ou próprio (e.g., doença autoimune)
      • Podem circular na corrente sanguínea ou estar fixos nos tecidos
    • Antigénio + anticorpo = complexo imune → resposta inflamatória → são recrutados neutrófilos e outros fatores inflamatórios → dano tecidual
      • Pode formar-se na circulação (e.g., GNPS)
      • Também pode formar-se diretamente nos tecidos (e.g., doença anti-GBM)
  • Desregulação do complemento:
    • Sistema/processo do complemento normal:
      • O complemento é um componente do sistema imunológico humoral.
      • A cascata termina com a formação de um complexo de ataque à membrana (MAC, pela sigla em inglês) → compromete a integridade da membrana da célula estranha → lise celular
    • Desregulação na GN:
      • Compromete a integridade da unidade de filtração glomerular → vazamento de eritrócitos e proteínas na urina → diminuição da taxa de filtração glomerular
      • Hiperativação da via alternativa → resposta inflamatória inadequada e recrutamento de neutrófilos → dano tecidual
Vias primárias do sistema complemento

Vias primárias do sistema do complemento
MBL, pela sigla em inglês: linfocitose monoclonal de células B

Imagem por Lecturio.

Tipos de Síndrome Nefrítica

As causas primárias e secundárias de GN variam de acordo com a etiologia, mas têm em comum a hematúria e graus variáveis de proteinúria. Os achados da biópsia diferem e são importantes saber.

Nefropatia de IgA

  • Apresentação clínica:
    • Apresenta-se mais frequentemente como GN crónica:
      • 40% apresentam hematúria macroscópica.
      • 30% são encontrados incidentalmente com hematúria microscópica persistente.
      • Pode apresentar-se em associação com uma infeção respiratória superior concomitante
    • Apresenta-se muito menos frequentemente como GN aguda ou GNRP (aproximadamente 5%–10%)
  • Diagnóstico:
    • Laboratorial: níveis de complemento sérico normais
    • Achados na biópsia renal:
      • Microscopia de luz: hipercelularidade mesangial
      • Imunofluorescência: positivo para IgA no mesângio
      • Microscopia eletrónica: depósitos imunes mesangiais
  • Tratamento:
    • Observar se a creatinina está normal e a proteinúria é < 500 mg/dia
    • IECA se proteinúria 500 mg–1000 mg/dia
    • Esteroides se doença progressiva
    • Transplante se progressão para doença renal terminal (DRT)

Glomerulonefrite pós-estreptocócica

  • Apresentação clínica:
    • Causa mais comum de síndrome nefrítica aguda (mas não concomitantemente) em crianças
    • Pode apresentar-se 1 a 3 semanas após uma infeção na garganta causada por estirpes nefritogénicas específicas do Streptococcus beta-hemolítico do grupo A
    • Pode apresentar-se 3-6 semanas após uma infeção da pele (impetigo): causada por Streptococcus do grupo A ou Staphylococcus aureus
  • Diagnóstico:
    • Laboratorial:
      • Teste da estreptozima: mede 5 anticorpos diferentes, incluindo antiestreptolisina-O após uma infeção faríngea
      • Sumário de urina: hematúria com cilindros eritrocitários, +/– proteinúria
    • Achados na biópsia renal:
      • Microscopia de luz: proliferação endocapilar difusa com neutrófilos
      • Imunofluorescência: C3 positivo; IgG granular com padrão “lumpy-bumpy” ou em “céu estrelado”
      • Microscopia eletrónica: depósitos subepiteliais de imunocomplexos “em bossa”
  • Tratamento:
    • Tratamento de suporte
    • Antibióticos: somente se a infeção por streptococos ainda estiver presente no momento do diagnóstico
    • Tratar hipertensão e/ou edema:
      • Diuréticos de ansa (e.g., furosemida)
      • Restrição de sódio e água

Nefrite Lúpica

  • Apresentação clínica:
    • Variável; pode apresentar-se como GN aguda/crónica ou como GNRP
    • Uma vez estabelecida frequentemente terá um padrão recorrente e remitente
    • Pode sobrepor-se à síndrome nefrótica
  • Diagnóstico:
    • Avaliação analítica:
      • Padrão da via clássica do complemento (C3 e C4 baixos)
      • Testes diagnósticos específicos: ANA, ADN de cadeia dupla (dsDNA, pela sigla em inglês)
    • Achados na biópsia renal (diferem por classe):
      • Classe III (GN proliferativa focal): < 50% de envolvimento dos glomérulos com proliferação celular; “wire loops”
      • Classe IV (GN proliferativa difusa): > 50% de envolvimento dos glomérulos com proliferação celular; “wire loops”
      • Classe V (nefropatia membranosa): Membrana basal espessada
  • Tratamento:
    • Classe I e II: tratamento conservador com IECA se hipertensão
    • Classe III e IV: adicionar fármacos imunossupressores (esteroides e ciclofosfamida).
    • Classe V: esteroides + micofenolato mofetil + IECA se proteinúria
Achados histopatológicos renais em paciente com lúpus eritematoso sistêmico

Achados histopatológicos renais no lúpus eritematoso sistémico:
Micrografias de luz de um glomérulo mostram espessamento difuso da membrana basal glomerular (coloração ácida periódico-metenamina de prata; × 400) (a) com hipercelularidade mesangial e expansão da matriz mesangial (coloração de ácido periódico-Schiff; × 400) (b). Análises de microscopia eletrónica mostram numerosos depósitos eletrodensos subepiteliais e mesangiais, bem como depósitos dentro da membrana basal glomerular com extensa fusão dos processos podocitários (×5000) (c).

Imagem: “Renal histopathological findings” por Su X., et al. Licença: CC BY 4.0

Doença antimembrana basal glomerular (síndrome de Goodpasture)

  • Apresentação clínica:
    • Apresenta apenas como GNRP (emergência médica)
    • Síndrome de Goodpasture (também chamada de crescêntica):
      • Refere-se ao envolvimento renal e pulmonar (síndrome pulmão-rim)
      • Apresentam hemoptises em 25%–60%
      • Mais provável em indivíduos < 30 anos
      • Indivíduos mais velhos > 50 anos são mais propensos a ter GN isolada.
  • Diagnóstico:
    • Níveis de complemento sérico normais
    • Testes diagnósticos específicos:
      • Anticorpo anti-MBG sérico
      • ANCA sérico (até metade será positivo = síndrome de sobreposição com vasculite por ANCA)
      • Radiografia de tórax/TAC: Avaliar hemorragia pulmonar.
      • Lavagem broncoalveolar para diagnóstico definitivo
    • Achados na biópsia renal:
      • Microscopia de luz: crescentes, necrose
      • Imunofluorescência: deposição linear de IgG
      • Microscopia eletrónica: achados inespecíficos
  • Tratamento:
    • Plasmaférese
    • Imunossupressores
    • Transplante em indivíduos que desenvolvem DRT

Glomerulonefrite membranoproliferativa mediada por imunocomplexos

  • Apresentação clínica:
    • Variável; pode ser desencadeada por uma infinidade de doenças subjacentes
    • Pode apresentar-se como GN aguda/crónica ou como GNRP
    • A glomerulonefrite membranoproliferativa frequentemente sobrepõe-se à síndrome nefrótica.
    • Frequentemente associada a crioglobulinemia mista com hepatite C
  • Diagnóstico:
    • Estudo analítico:
      • Padrão da via clássico do complemento (C3 baixo, C4baixo)
      • Anticorpos contra a hepatite B e C
    • Achados na biópsia:
      • Microscopia de luz: padrão em “linhas de comboio” com contorno duplo da MBG
      • Imunofluorescência: varia de acordo com a etiologia
      • Microscopia eletrónica: depósitos subendoteliais
  • Tratamento:
    • GN aguda: esteroides + micofenolato mofetil (evitar se agravamento significativo da função renal)
    • GNRP: esteroides IV mais ciclofosfamida

Glomerulonefrite membranoproliferativa mediada por complemento

  • Apresentação clínica:
    • Os subtipos chamados doença de depósitos densos (DDD) e glomerulonefrite de C3 são raros.
    • Pode apresentar-se como glomerulonefrite aguda/crónica ou como GNRP
    • Podem ser observadas drusas (depósitos de gordura na retina) na DDD.
  • Diagnóstico:
    • Estudo analítico:
      • Padrão da via alternativa do complemento (C3 baixo, C4 normal)
      • Fator nefrítico C3 sérico
      • Mutações do fator I/fator H
    • Achados na biópsia:
      • Microscopia de luz: contorno duplo em linhas de comboio na MBG
      • Imunofluorescência: C3 positivo
      • Microscopia eletrónica: depósitos densos intramembranosos (somente se doença degenerativa do disco)
  • Tratamento:
    • Conservador com IECA se proteinúria < 1,5 g/dia e creatinina normal
    • Esteroides + micofenolato mofetil se ≥ 1,5 g/dia proteinúria ou creatinina anormal
    • O transplante é uma opção, mas é possível recorrer após o mesmo.

Diagnóstico Diferencial

  • Síndrome de Alport: também conhecida como nefrite hereditária. A síndrome de Alport é uma doença genética do colagénio tipo IV da membrana basal. A apresentação clínica inclui inicialmente hematúria microscópica isolada, que pode ser confundida com nefropatia por IgA ou doença da membrana basal fina. Há também perda auditiva neurossensorial característica, bem como alterações oculares. A DRC desenvolve-se ao longo do tempo e pode progredir para DRT, exigindo transplante.
  • Doença da membrana basal fina: também conhecida como hematúria familiar benigna. Esta doença genética apresenta hematúria microscópica isolada e pode ser confundida com nefropatia por IgA ou síndrome de Alport. A biópsia renal mostra apenas diminuição difusa da espessura da MBG na microscopia eletrónica. O prognóstico geral para a doença da membrana basal fina é bom. Os indivíduos devem receber um IECA e fazer um acompanhamento de longo prazo, pois pode haver sobreposição com a síndrome de Alport e alguns desenvolverão DRC.
  • Púrpura de Henoch-Schönlein: também conhecida como vasculite por IgA. A púrpura de Henoch-Schönlein é principalmente uma doença pediátrica e é a causa mais comum de vasculite em crianças. Essa condição envolve a deposição de imunocomplexos IgA em múltiplos vasos após um desencadeante (infeção/ambiental) e inclui sintomas cutâneos, gastrointestinais e musculoesqueléticos. Os achados renais são muito semelhantes aos da nefropatia por IgA, mas a doença geralmente é autolimitada em crianças, e a biópsia renal e os esteroides geralmente não são necessários.

Referências

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  3. Fervenza, F. C., Sethi, S. (2021). Membranoproliferative glomerulonephritis: Classification, clinical features, and diagnosis. UpToDate. Retrieved October 25, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/membranoproliferative-glomerulonephritis-classification-clinical-features-and-diagnosis
  4. Fervenza, F. C., Sethi, S. (2020). Membranoproliferative glomerulonephritis: treatment and prognosis. UpToDate. Retrieved October 25, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/membranoproliferative-glomerulonephritis-treatment-and-prognosis
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  6. Kopel, T., Salant, D. J. (2020). C3 glomerulopathies: Dense deposit disease and C3 glomerulonephritis. UpToDate. Retrieved October 25, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/c3-glomerulopathies-dense-deposit-disease-and-c3-glomerulonephritis
  7. McAdoo, S. P., Pusey, C. D. (2017). Anti-glomerular basement membrane disease. Clinical Journal of the American Society of Nephrology 12:1162–1172. https://doi.org/10.2215/CJN.01380217
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