Perturbação do Uso de Canábis

A perturbação do uso de canábis (PUC) é caracterizada pelo consumo patológico de canábis, a substância ilícita mais consumida em todo o mundo. Embora a canábis tenha alguns benefícios na utilização para fins medicinais, também tem o potencial de provocar intoxicação, que se caracteriza por psicose ou défice cognitivo, sobretudo nos casos de utilização crónica. Ao contrário da maioria das outras substâncias, os sintomas de abstinência são ligeiros. Atualmente, não existem evidências fortes dos benefícios a longo prazo das intervenções farmacológicas ou psicossociais no tratamento da perturbação do uso de canábis. Outros fatores, como perturbações do humor ou personalidade subjacentes, ou outras perturbações do uso de substâncias concomitantes, estão associados a um prognóstico desfavorável.

Última atualização: Oct 19, 2022

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

Definição e Epidemiologia

Definição

A perturbação do uso de canábis (PUC) é definida como o uso crónico (> 12 meses) e inadequado de canábis.

  • Intoxicação:
    • Sensibilidade aumentada a estímulos
    • Desrealização e despersonalização com doses mais altas
    • As capacidades motoras ficam comprometidas durante 8-12 horas após o consumo.
    • Delirium e distúrbios psicóticos induzidos pela canábis também podem ocorrer.
  • Abstinência:
    • Desenvolvimento de uma síndrome específica da substância devido à cessação (ou redução) do uso dessa mesma substância
    • Muito ligeira para a canábis e outras drogas inalantes/do tipo alucinogénico
  • Tolerância:
    • A necessidade de aumentar a dose da substância para atingir o efeito desejado (efeito diminuído se usar a mesma quantidade da substância)
    • Não existe evidência forte de dependência fisiológica para a canábis.

Epidemiologia

  • A canábis é a substância ilícita mais amplamente utilizada.
  • Consumida por cerca de 192 milhões de pessoas em todo o mundo
  • Cerca de 13 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de perturbação do uso de canábis moderada a grave.
  • A prevalência de PUC diminui com o aumento da idade.
  • Os homens têm uma probabilidade duas vezes maior de desenvolver PUC quando comparado com as mulheres.

Farmacologia

Propriedades farmacológicas

  • A canábis é consumida tanto das variedades naturais quanto das cultivadas através da agricultura (têm maior potência).
  • Formulações sintéticas disponíveis (por exemplo, “especiarias”, “K2”)
  • Formas habituais de consumo:
    • Tabagismo (mais comum)
    • Vaporizadores
    • Cozinhada sob a forma de biscoitos ou outros doces
    • Chá
  • THC (tetra-hidrocanabinol):
    • O principal componente psicoativo e o mais potente da canábis
    • 50% do THC entra rapidamente na corrente sanguínea através dos alvéolos nos pulmões após a inalação.
    • O THC liga-se aos recetores canabinóides no sistema de recompensa cerebral → resulta em sentimentos de euforia
    • Os canabinóides sintéticos têm compostos ativos mais potentes que o THC.
  • Os recetores canabinóides são proteínas G inibitórias → inibem a adenilato ciclase → diminui o cAMP
  • Os canabinoides são lipofílicos → podem permanecer no corpo em níveis detetáveis durante dias a semanas

Utilizações medicinais da canábis

Indicações:

  • Tratamento de náuseas e vómitos, estimulação do apetite:
    • Quimioterapia
    • Esclerose múltipla
    • SIDA
    • Pacientes com dor crónica
  • Diminuição da pressão intraocular no glaucoma
  • Epilepsia infantil e convulsões refratárias

Formas farmacêuticas:

  • Dronabinol
  • Nabilona
  • Rimonabanto

Apresentação Clínica e Diagnóstico

Para fazer o diagnóstico de intoxicação ou abstinência por canábis, deve colher-se uma história clínica detalhada no que respeita aos seus consumos. A pesquisa de drogas na urina ajuda a confirmar o diagnóstico. Os sinais e sintomas estão enumerados abaixo.

Intoxicação por canábis

  • Nunca foi reportada nenhuma morte devida apenas à intoxicação por canábis.
  • Gerais: euforia ou sensação de relaxamento, riso inapropriado
  • SNC: atraso psicomotor, compromisso na função motora
  • Oftalmológicas: hiperémia conjuntival ou “vermelhidão” das conjuntivas
  • GI: aumento do apetite, xerostomia
  • Pesquisa de drogas na urina:
    • Detecta o principal metabolito inativo 11-Nor-9-carboxi THC
    • O uso pontual pode causar níveis detetáveis durante 3 dias.
    • O uso crónico pode causar níveis detetáveis durante 30 ou mais dias.

Abstinência de canábis

  • Gerais: alterações do humor, ligeiro aumento da irritabilidade
  • SNC: insónia
  • GI: náuseas, diminuição do apetite

Tratamento e Complicações

Tratamento da intoxicação e abstinência por canábis

  • Intervenções psicossociais de apoio (por exemplo, tratamento de contingências, grupos, etc.).
  • Tratamento sintomático
  • Os antipsicóticos podem ser usados nos casos de intoxicações graves.

Tratamento da perturbação do uso de canábis

  • Psicoterapia: terapia cognitivo-comportamental (TCC) ou reforço motivacional
  • Fármacos:
    • Não existe nenhuma evidência forte para qualquer fármaco
    • Se a psicoterapia por si só não for eficaz, o tratamento conjunto com N-acetilcisteína (se adolescente / jovem adulto) ou gabapentina (adultos) pode ser útil.

Complicações da perturbação do uso de canábis

  • Distúrbio psicótico induzido por canábis:
    • Distúrbio psicótico no contexto da utilização de canábis
    • Apresenta-se habitualmente com delírios paranóides transitórios
    • O uso crónico de canábis tem sido associado ao desenvolvimento tardio de esquizofrenia.
  • Síndrome amotivacional:
    • Associado ao uso severo de canábis de longa duração
    • Pode ser confundida com perturbação do humor subjacente
    • O uso de canábis pelos adolescentes está associado ao uso de outras substâncias (“gateway drug”).

Diagnóstico Diferencial

  • Esquizofrenia: perturbação mental crónica caracterizada por sintomas positivos (delírios, alucinações, discurso ou comportamento desorganizado) e negativos (embotamento afetivo, avolição, anedonia, falta de atenção e alogia). Está associada a um declínio no funcionamento de duração superior a 6 meses. O uso de canábis pode levar a psicose e a sintomas semelhantes aos da esquizofrenia na fase aguda. O tratamento da esquizofrenia é feito com antipsicóticos.
  • Perturbação do uso de cocaína: a cocaína é um simpático mimético indireto que bloqueia a recaptação da dopamina, epinefrina e norepinefrina na fenda sináptica. Este processo provoca um efeito estimulante (euforia, aumento da energia, irritabilidade, psicose, diminuição do apetite, perda ponderal e hipersónia) semelhante à canábis, mas mais pronunciado. Os sintomas de abstinência incluem depressão severa e fadiga. O tratamento é muito semelhante ao da canábis, visto que não existem fármacos que possam ser utilizados diretamente para a perturbação do uso da cocaína.
  • Intoxicação por inalantes: abuso de substâncias inalantes, tais como cola, tinta ou fluido de isqueiro. Para atingir os efeitos eufóricos, os doentes administram os inalantes pela via oral (conhecidos como “huffing“) ou pela via nasal. O efeito dura apenas alguns minutos. Os sinais de intoxicação aguda variam desde euforia transitória até perda de consciência. Os inalantes levam a inibição do sistema nervoso central e a arritmias cardíacas. O tratamento é de suporte e os fármacos sedativos devem ser evitados, pois, tendem a piorar a intoxicação.

Referências

  1. Ganti, Latha. (2005). First aid for the psychiatry clerkship: a student-to-student guide. New York :McGraw-Hill, Medical Pub. Div. Chapter 7, Substance related and addictive disorders, pages 80, 92.
  2. Gorelick, D. (2021). Cannabis use and disorder: Epidemiology, comorbidity, health consequences, and medico-legal status. UpToDate. Retrieved February 16, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/cannabis-use-and-disorder-epidemiology-comorbidity-health-consequences-and-medico-legal-status
  3. Wang, George. (2021). Cannabis (marijuana): Acute intoxication. UpToDate. Retrieved February 16, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/cannabis-marijuana-acute-intoxication
  4. Sadock, B. J., Sadock, V. A., & Ruiz, P. (2014). Kaplan and sadock’s synopsis of psychiatry: Behavioral sciences/clinical psychiatry (11th ed.). Chapter 20, Substance use and addictive disorders, pages 644-647. Philadelphia, PA: Lippincott Williams and Wilkins.
  5. Thompson, A. (2021). Clinical management of drug use disorders. DeckerMed Medicine. doi:10.2310/im.13042

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