Morte Cerebral

A morte cerebral é um termo clínico e legal que descreve a cessação irreversível de todas as funções cerebrais e do tronco cerebral, incluindo a capacidade do tronco cerebral de regular as atividades vegetativas e respiratórias. A morte cerebral pode ser causada por diferentes etiologias que levam a lesões catastróficas no cérebro, incluindo isquemia cerebral por paragem cardiorrespiratória, fármacos, sépsis e trauma. O diagnóstico é feito à cabeceira do doente com base no contexto clínico e na realização do exame neurológico. Os exames complementares de diagnóstico podem ser necessários para apoiar o diagnóstico e os critérios diagnósticos podem variar entre os estados e países. O diagnóstico de morte cerebral deve ser estabelecido antes de se considerar a doação de órgãos.

Última atualização: Nov 2, 2023

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

Visão Geral e Fisiopatologia

Definição

A morte cerebral é a perda completa e permanente de todas as funções cerebrais e do tronco cerebral, incluindo a capacidade do tronco cerebral de regular as atividades vegetativas e respiratórias.

Definição de “perda completa e permanente” da função cerebral:

  • Coma irresponsivo com perda da capacidade de consciência
  • Perda de reflexos do tronco cerebral
  • Incapacidade de respirar sem suporte respiratório
  • Perda de função sem possibilidade de reverter espontaneamente ou de ser restaurada através de intervenções

Etiologia

  • Traumatismo crâniano
  • AVC hemorrágico ou isquémico
  • Paragem cardiorrespiratória com RCR (ressuscitação cardiorrespiratória) inadequada
  • Tumor cerebral
  • ↑ Pressão intracraniana (PIC)
  • Infeção do SNC
  • Sépsis que leva a hipoperfusão cerebral e isquemia
  • Overdose de fármacos

Fisiopatologia

  • Lesão cerebral → edema cerebral → ↑ PIC
    • O edema pode ocorrer por:
      • Rutura vasogénica da barreira hematoencefálica → extravasamento de proteínas do plasma para o cérebro
      • Modificações citotóxicas na osmolalidade celular → neurónios perdem a capacidade de gerir gradientes iónicos
    • A pressão de perfusão cerebral (PPC) é igual à pressão arterial média (PAM) menos PIC:
      • A PPC tem capacidade de autorregulação para garantir a perfusão cerebral em circunstâncias normais.
      • A autorregulação é perdida nos extremos da PAM ou PIC.
      • ↑ PIC → ↓ PPC → isquemia cerebral
      • ↑ Severo da PIC → herniação cerebral
  • Disfunção mitocondrial causada pela hipóxia celular → geração de radicais livres e redução na produção de energia celular → morte celular neuronal:
    • Inicialmente, nos hemisférios cerebrais e gânglios da base
    • Seguido pelo tálamo e tronco cerebral

Apresentação Clínica

História

  • Estabelece a etiologia do coma (e.g., overdose, trauma, acidente vascular cerebral).
  • Avalia condições que possam mimetizar uma lesão cerebral irreversível:
    • Alterações hidroeletrolíticas graves ou distúrbios ácido-base
    • Disfunção endócrina grave
    • Hipotermia: É necessária uma temperatura interna mínima de 36°C.
    • Colapso circulatório (e.g., hipotensão grave)
    • Nível de álcool no sangue > 80 mg/dL
  • Na presença de fármacos sedativos e bloqueadores neuromusculares administrados em ambiente hospitalar:
    • Suspender os fármacos por 5 períodos de semivida antes dos testes de confirmação da morte cerebral.
    • Pode ser necessário mais tempo se disfunção hepática ou renal

Exame físico

  • Pressão arterial sistólica > 100 mm Hg: podem ser necessários vasopressores.
  • Determinação de coma pela ausência bilateral de resposta motora à:
    • Estimulação verbal: Chamar o nome da pessoa.
    • Estimulação tátil:
      • Agitar ou tocar no indivíduo.
      • Aplicar pressão na incisura supraorbital ou no ângulo esternal.
    • Respostas consistentes com morte cerebral:
      • Ausência de esgar ou movimento dos músculos faciais
      • Sem resposta motora dos membros, além dos reflexos espinhais (sinal de Lázaro)
  • Reflexo pupilar à luz:
    • Iluminar cada olho e procurar se ocorre constrição pupilar.
    • Respostas consistentes com morte cerebral:
      • Ausência de resposta pupilar ipsilateral e contralateral
      • Pupilas fixas numa posição de tamanho médio ou dilatadas (4-6 mm) bilateralmente
      • A constrição pupilar não é consistente com morte cerebral.
  • Reflexo oculocefálico (OCR, pela sigla em inglês) e reflexo oculovestibular (OVR, pela sigla em inglês):
    • OCR: testado girando a cabeça vigorosamente e horizontalmente para ambos os lados:
      • O termo “olhos de boneca” refere-se a bonecas vintage com olhos pintados e incapazes de mover a cabeça.
      • Reflexo anormal: os olhos permanecem fixos com o movimento da cabeça, como se estivessem a olhar para um ponto fixo.
    • OVR: instilar 50 mL de água fria no ouvido com a cabeça a uma elevação de 30°.
    • Respostas consistentes com morte cerebral: movimento ocular ausente em ambos os testes
  • Reflexo corneano:
    • Testado tocando na córnea com um cotonete ou esguichos de água / soro fisiológico
    • Respostas consistentes com morte cerebral: ausência de movimento da pálpebra
  • Reflexo do vómito:
    • Testado tocando na parede posterior da faringe com um dispositivo de sucção ou um depressor da língua
    • Resposta consistente com morte cerebral: ausência de reflexo do vómito
  • Reflexo da tosse:
    • Testado estimulando a parede traqueobrônquica por aspiração
    • Resposta consistente com morte cerebral: ausência de tosse

Diagnóstico

A avaliação da morte cerebral num indivíduo com suporte de vida requer neuroimagem, exclusão de fatores confundidores e, possivelmente, um EEG.

  • Critérios de diagnóstico de morte cerebral:
    • Etiologia clínica conhecida de morte encefálica
    • Ausência de condições de confundimento:
      • Hipotermia
      • Sedativos / anestésicos
      • Alterações metabólicas
    • Alteração dos reflexos do tronco cerebral ao exame neurológico
    • Teste de apneia positivo
    • Testes auxiliares (quando apropriado)
  • Neuroimagem:
    • A ressonância magnética ou tomografia computadorizada demonstram lesão cerebral irreversível e devastadora:
      • Evidência de edema grave ou herniação
      • Se observado, o edema cerebral é sugestivo de morte encefálica.
    • Medição da PIC apresenta um valor pelo menos igual a PAM
  • Análises:
    • Eletrólitos
    • Hemograma
    • Gasimetria arterial
    • Testes toxicológicos
    • Análise do LCR
  • Teste da apneia: faz parte de todos os protocolos de diagnóstico de morte cerebral:
    • Realizado após todos os outros critérios para morte cerebral terem sido cumpridos
    • Antes do teste:
      • Ajustar as configurações do ventilador para uma PCO2 entre 35–45 mm Hg.
      • Sem hipóxia: 100% O2 por pelo menos 10 minutos antes do teste
      • Suspender boqueadores neuromusculares.
    • Não pode ser feito se:
      • Presença de lesões da coluna cervical alta
      • Indivíduos com retenção crónica de PCO2
    • Passos:
      • Suspender o ventilador por 10 minutos.
      • Fornecer O2 a um máximo de PO2 de 200 mm Hg, ou até PCO2> 40 mm Hg.
      • Se for observada instabilidade hemodinâmica → o teste é interrompido
      • Se sem esforço respiratório espontâneo → o teste termina após 10 minutos
    • Teste positivo:
      • Sem resposta respiratória à PCO 2> 60 mm Hg ou 20 mm Hg> valor basal
      • PH arterial final <7,28
  • Testes auxiliares são necessários se o exame neurológico primário ou teste de apneia não puderem ser concluídos, ou se um destes for inconclusivo:
    • Estudos de fluxo sanguíneo cerebral: A ausência de fluxo sanguíneo cerebral determina morte cerebral.
      • Modalidade preferida: estudos de radionuclídeos
      • Angiografia cerebral convencional de 4 vasos
      • TAC
      • RMN
      • Doppler transcraniano
    • EEG:
      • Necessário para diagnosticar morte cerebral em crianças
      • Não é exigido de forma rotineira em adultos, mas pode ser mandatório por lei
      • Se não for registado nenhum potencial após 30 minutos é consistente com morte cerebral.
      • Podem ocorrer falsos negativo ou falsos positivos
Brain death algorithm
Algoritmo que descreve o curso de ação em indivíduos em morte cerebral
Imagem de Lecturio.

Considerações Clínicas e Éticas

Documentação necessária para determinação de morte cerebral

  • Etiologia do coma
  • Ausência de condições confundidoras
  • Detalhes completos e resultados dos testes clínicos realizados
  • Resultados de neuroimagem e tempo em relação aos testes clínicos
  • Motivo e tipo de teste auxiliar realizado e resultados
  • Hora da morte
  • Identidade do (s) médico (s) que realizam a avaliação

Suporte de vida após a declaração de morte cerebral

  • Diagnóstico feito → o indivíduo é declarado morto clínica e legalmente
  • O suporte fisiológico deve ser descontinuado, a menos que:
    • O morto é uma grávida e é necessário suporte para o feto.
    • A doação de órgãos está planeada:
      • Notificar o Center for Organ Recovery and Education (CORE).
      • Os coordenadores de aquisição de órgãos reveem o registo clínico do doente.
      • Se apropriado, os coordenadores falam com os familiares mais próximos do potencial dador.
    • Pedidos familiares devido a crenças religiosas ou morais:
      • Deve ser feito todo o esforço para abordar as suas preocupações.
      • O envolvimento de autoridades religiosas ou comités de ética pode ser útil.
      • Tratar cada pessoa e família com o maior respeito.
      • É aconselhada uma abordagem multidisciplinar (e.g., assistentes sociais, psicólogos, conselheiros).
      • O prolongamento do suporte> 48 horas geralmente deve ser evitado.

Diagnóstico Diferencial

  • Síndrome de Locked-in (também conhecida como “pseudocoma” ou “estado de deferentação”): estado de tetraplegia e paralisia dos nervos cranianos inferiores que leva à incapacidade de se movimentar, comunicar ou mostrar qualquer expressão facial (exceto determinados movimentos oculares). A síndrome de Locked-in geralmente resulta de hemorragia pontina ou enfarte. O diagnóstico é clínico e é feito quando o indivíduo se limita a piscar os olhos ou a realizar movimentos oculares verticais, mediante solicitação. A abordagem envolve cuidados de suporte e prevenção de complicações decorrentes da imobilização. A fisioterapia de longo prazo é essencial.
  • Hipotermia: uma queda na temperatura corporal central abaixo de 35°C. A hipotermia é classificada nas formas leve, moderada, grave e profunda com base no grau de diminuição da temperatura. Os indivíduos nos extremos de idade, sem-abrigo, com doença mental ou com perturbações por uso de substâncias podem ser mais vulneráveis à hipotermia acidental. A abordagem inclui a avaliação de trauma associado e condições médicas que possam estar a contribuir. O tratamento envolve o reaquecimento do indivíduo com base na gravidade da hipotermia.
  • Intoxicação farmacológica: a intoxicação farmacológica por supressores do SNC ou relaxantes / bloqueadores neuromusculares. Os fármacos opióides, tricíclicos, baclofeno, barbitúricos, bloqueadores neuromusculares, anticolinérgicos e organofosforados podem deprimir significativamente a consciência e as respostas motoras/sensoriais. A exposição pode ser conhecida ou não reconhecida. O diagnóstico é baseado na história, revisão de fármacos ingeridos, entrevistas com a família e avaliações toxicológicas. O tratamento é baseado no diagnóstico.
  • Lesão da coluna cervical alta: tais lesões estão associadas a quadriparésia, perda de sensibilidade abaixo do nível da lesão, incapacidade de respirar e redução da capacidade de falar. Embora a avaliação neurológica deva distinguir facilmente a lesão cervical alta da morte cerebral, o quadro clínico pode ser confundido por uma lesão cerebral traumática concomitante ou pelos efeitos de fármacos. A vigilância e avaliações neurológicas abrangentes repetidas em combinação com a neuroimagem são úteis para estabelecer o diagnóstico correto. O tratamento pode ser médico ou cirúrgico.

Referências

  1. Starr, R., Tadi, P., & Pfleghaar, N. (2021). Brain death. StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing. Retrieved from http://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK538159/
  2. Young, G.B. (2021). Diagnosis of brain death. UpToDate. Retrieved July 22, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/diagnosis-of-brain-death
  3. Kaur, P., & Sharma, S. (2018). Recent advances in pathophysiology of traumatic brain injury. Current Neuropharmacology 16(8): 1224–1238. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6142406/

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