Fibrose Quística

A fibrose quística é um distúrbio autossómico recessivo causado por mutações no gene CFTR. As mutações levam à disfunção dos canais de cloro, resultando num muco hiperviscoso e na acumulação de secreções. As apresentações clínicas mais comuns incluem infeções respiratórias crónicas, má evolução estaturo-ponderal e insuficiência pancreática. O exame de diagnóstico "gold standard" é o teste de cloro no suor, e pode ser complementado por testes genéticos. A fibrose quística leva à inflamação crónica e falência multiorgânica. O tratamento inclui terapêutica do modulador do CFTR e tratamento de suporte dirigido aos órgãos afetados. O prognóstico varia conforme o tratamento e complicações. Com um ótimo acompanhamento médico, os pacientes podem viver até aos 40 anos.

Última atualização: Jul 28, 2023

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

Epidemiologia

  • Sinónimos: mucoviscidose, fibrosa cystica
  • A incidência difere significativamente entre etnias:
    • Caucasianos: 1 em 3.000-4.000 nados-vivos
    • Latino-americanos: 1 em 4.000-10.000 nados-vivos
    • Afroamericanos: 1 em cada 15.000-20.000 nados-vivos
    • Asiáticos-americanos: 1 em cada 30.000 nados-vivos
  • É a doença autossómica recessiva mais comum em indivíduos leucodérmicos
  • Incidência nos Estados Unidos: 1 em 3.400 nados-vivos
  • Em muitos países com alta prevalência desta patologia, o rastreio da fibrose quística (FQ) faz parte do rastreio geral dos recém-nascidos.
  • Mais de 75% das pessoas com FQ são diagnosticadas aos 2 anos.

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Etiologia e Fisiopatologia

Etiologia

  • Hereditariedade autossómica recessiva
  • Foram identificadas mais de 1.500 mutações.
  • Observam-se mutações no cromossoma 7, que codifica a proteína reguladora de condutância transmembranar de fibrose cística (CFTR, pela sigla em inglês).
  • Mais de 2.000 mutações no gene CFTR podem causar doenças.
  • A mutação mais comum na Europa Central e América do Norte é a mutação delta F508 no cromossoma 7. Esta deleção provoca a perda da fenilalanina na posição 508.
Tipos de mutação em fibrose quística

Tipos de mutação na fibrose quística

Imagem por Lecturio.
  • O tipo de mutação é crucial para determinar a gravidade da doença.
    Existem 5 classes distintas:
    1. Classe I: Sem expressão génica de CFTR; o RNA do mensageiro (mRNA) é terminado, pelo que não é produzida a proteína CFTR.
    2. Classe II: O canal CFTR pode formar-se, mas há uma alteração no processo de tradução. A proteína instável é degradada por proteossomas e, portanto, não se forma na membrana (aplica-se à mutação delta F508).
    3. Classe III: O canal é expresso e colocado na membrana, mas não consegue abrir devido a uma mutação do canal (por isso não há fluxo de cloreto).
    4. Classe IV: A proteína é produzida e localizada na membrana, mas o canal não se abre corretamente. (défice na condutância de cloreto, devido à redução do fluxo de iões e da duração da abertura do canal).
    5. Classe V: mudança na estabilidade do mRNA, o que leva a uma menor produção da proteína CFTR funcional. Em alguns casos, a instabilidade está na proteína CFTR (e é classificada como classe VI).
  • As mutações de classe I, II, e III resultam em doenças mais clássicas e graves.
  • O CFTR codifica um importante componente do canal de cloro regulado por ATP nas membranas celulares.
    • Geralmente encontrado nas células epiteliais por todo o corpo (por exemplo, epitélios gastrointestinal e respiratório, glândulas sudoríparas, pâncreas exócrino, glândulas exócrinas dos órgãos reprodutivos)

Fisiopatologia

  • Mutação no CFTR → canal de cloro ausente ou disfuncional → transporte disfuncional de cloro → transporte secundário anormal de sódio e água
  • Nas glândulas sudoríparas: incapacidade de reabsorver cloro do lúmen → redução da reabsorção de sódio e água → suor com níveis elevados de cloreto de sódio + perda excessiva de sal
  • Nas restante das glândulas exócrinas: incapacidade de secreção de cloro no lúmen → acumulação de cloro intracelular → aumento da reabsorção de sódio e água → formação de muco hiperviscoso → acumulação de secreções → bloqueio de pequenas passagens → inflamação crónica → lesões multiorgânicas

Impacto nos órgãos

  • Pulmões:
    • Desobstrução mucociliar ineficaz; obstrução dos alvéolos/bronquíolos com aumento do risco de infeção
    • Destruição do pulmão e alteração da estrutura num parânquima em padrão favo de mel devido à inflamação crónica
  • Pâncreas:
    • Bloqueio do ducto da glândula exócrina
    • Mutação fibrótica e quística
    • Perda da função exócrina
  • Vesícula biliar:
    • Obstrução da drenagem biliar
    • Desenvolvimento de cirrose biliar
  • Intestinos:
    • Obstipação

Apresentação Clínica

Sistema respiratório

  • Infeções sinusais crónicas/recorrentes, pólipos nasais
  • Infeções pulmonares recorrentes, especialmente por Pseudomonas aeruginosa
    • O aumento da insuficiência pulmonar provoca dispneia com o esforço, anoxia e bronquiectasias.
    • Baqueteamento digital
    • 10%-50% dos pacientes desenvolvem polipose nasal e pansinusite crónica
    • Sibilância expiratória e tórax em barril

Sistema gastrointestinal

Intestino delgado Apresentam secreções espessas que prejudicam a absorção intestinal, aumentando o risco de obstrução.
  • O mecónio não é eliminado nas primeiras 48 horas de vida do recém-nascido
  • Obstipação, dor abdominal
  • Obstrução intestinal, incapacidade de passagem de gases, distensão abdominal, náuseas, vómitos
Intestino grosso Os macronutrientes incompletamente digeridos resultam em fezes espessas, predispondo o paciente a obstrução, impactação fecal e intussusceção intestinal.
Pâncreas
  • As secreções espessas bloqueiam o ducto pancreático e prejudicam a absorção de gordura, provocando uma deficiência das vitaminas lipossolúveis A, D, E e K.
  • A diminuição do bicarbonato danifica o epitélio digestivo e consequentemente prejudica a absorção.
  • As enzimas pancreáticas destroem lentamente o pâncreas, resultando em fibrose e comprometimento da função endócrina (diabetes).
Dor abdominal; cólicas abdominais; distensão abdominal; fezes volumosas e oleosas frequentes; perda de peso; flatulências
Hepatobiliar
  • A bílis fica desidratada, predispondo a formação de cálculos biliares.
  • A colestase crónica provoca inflamação e fibrose, resultando em cirrose e hipertensão portal.
Dor no quadrante superior direito após refeições grandes e gordurosas; náuseas; vómitos; icterícia

Sistema reprodutivo

  • Sexo masculino
    • Infertilidade e atraso do desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários, devido a:
      • Azoospermia obstrutiva por aplasia/atresia bilateral do ducto deferente
      • Testículos não descidos; 15 vezes mais provável do que na população geral
  • Sexo feminino
    • Redução da fertilidade por:
      • Muco cervical viscoso
      • Amenorreia

Sistema urinário

  • Nefrolitíase
  • Incontinência de esforço (é frequente com a tosse)

Mnemónica

Para lembrar as características clínicas mais comuns da fibrose quística, lembre-se da sigla “CF PANCREAS“:

  • C: Chronic cough (Tosse crónica)
  • F: Failure to thrive (Má evolução estaturo-ponderal)
  • P: Pancreatic insufficiency – exocrine (Insuficiência pancreática – exócrina)
  • A: Alkalosis and hypotonic dehydration (alcalose e desidratação hipotónica)
  • N: Nasal polyps, neonatal dehydration (Pólipos nasais, desidratação neonatal)
  • C: Clubbing of fingers – Hippocratic fingers and nails (Baqueteamento digital – hipocratismo digital)
  • R: Rectal prolapse (Prolapso retal)
  • E: Electrolyte elevation – sweat (elevação dos eletrólitos – suor)
  • A: Atresia, absence of vas deferens (atrésia do ducto deferente)
  • S: Sputum with Staphylococcus aureus or Pseudomonas(Expetoração com Staphlococcus aureus ou Pseudomonas)

Complicações

Exacerbação da doença pulmonar
  • Sem critérios estabelecidos; definido como uma alteração aguda na função pulmonar
    • Tosse de novo, aumento da tosse de base ou produção de expetoração, diminuição da tolerância ao exercício, aumento da frequência respiratória
  • Pode incluir anorexia, perda de peso, febre e fadiga
  • Pode levar a pneumotórax espontâneo
  • Os pacientes podem apresentar hemoptises (hemorragia das artérias pulmonares, potencialmente letal se a perda sanguínea for > 0,5 L em 24 horas)
Colonização crónica por microorganismos
  • Presença de 1 microorganismo patogénico em pelo menos 3 culturas de expetoração durante 6 ou mais meses
  • Bebés:
    • Infeção porStaphylococcus aureus
    • Haemophilus influenzae
  • Crianças e adolescentes:
    • Pseudomonas aeruginosa (com formação de biofilme)
    • Stenotrophomonas maltophilia
  • Infeções virais
Aspergilose broncopulmonar alérgica Colonização das vias aéreas por Aspergillus, seguida de uma resposta imunológica vigorosa mediada por IgE e IgG. Os pacientes podem apresentar vários sintomas, incluindo agravamento da febre, mal-estar e obstrução mucosa que pode não melhorar com antibioterapia
Cirrose biliar Obstrução do ducto biliar em adultos
Insuficiência pancreática endócrina Desenvolvimento de diabetes mellitus. Pode haver destruição das ilhotas de Langerhans em adultos

Diagnóstico

Algorithm for cystic fibrosis diagnosis

Algoritmo de diagnóstico para FQ utilizado em vários países. IRT: tripsinogénio imunoreativo, pela sigla em inglêsImagem por Lecturio.

Rastreio de recém-nascidos

  • O rastreio da FQ faz parte do rastreio neonatal na maioria dos países de alta prevalência (América do Norte, Austrália, em muitos países europeus).
  • Envolve múltiplas etapas de análise de manchas de sangue seco
  • Medição do tripsinogénio imunoreativo e, se positivo → análise da mutação do CFTR
  • Se estes resultados indicarem FQ, o próximo passo é um teste de cloro do suor quando o bebé tiver pelo menos 2 semanas e pesar mais de 2 kg.

Teste de cloro do suor: exame “gold standard” para o diagnóstico

  • Utiliza-se a iontoforese da pilocarpina para determinar a concentração de cloro no suor
  • 60 mmol/L em 2 testes: diagnóstico de FQ
Rastreio neonatal

Princípio e realização de um teste de cloro de suor

Imagem por Lecturio.

Testes laboratoriais adicionais

Se o diagnóstico não for claro, podem ser realizados mais testes.

Diferença de potencial nasal:

  • Teste especializado realizado apenas em centros de FQ; avalia mais a disfunção do CFTR
  • Os elétrodos são colocados na cavidade nasal, que é então banhada numa série de soluções com diferentes sais, com o intuito de mudar o fluxo de iões através da membrana de forma previsível.
  • Os pacientes com FQ têm uma potencial basal mais negativo e reagem de forma diferente aos outros sais, devido ao transporte defeituoso de cloro.

Medição da corrente intestinal (MCI):

  • Pode ser realizado em doentes de todas as idades, incluindo recém-nascidos
  • É obtida uma biópsia por aspiração retal.

Elastase fecal:

A insuficiência pancreática pode ser detetada pela pesquisa nas fezes da elastase pancreática-1. No entanto, está ausente em 80% das pessoas com FQ.

Imagiologia:

  • TC dos seios perinasais: panopacificação, pólipos nasais
  • TC do tórax: bronquiectasias tipicamente nos lobos superiores. Estas podem progredir e tornarem-se visíveis na radiografia de tórax

Cultura de secreções das vias aéreas:

  • Deteção persistente das seguintes bactérias nas secreções respiratórias e na expetoração
  • 80% têm crescimento de S. aureus ou Pseudomonas aeruginosa
  • Haemophilus influenzae, Burkholderia cepacia, Stenotrophomonas maltophilia
    • Em pessoas saudáveis sem FQ, todos estes microorganismos (exceto S. aureus) seriam incomuns

Tratamento

O tratamento da FQ deve ser multidisciplinar e incluir médicos especializados, fisioterapeutas, nutricionistas e/ou apoio psicológico.

Abordagem por sistema de órgãos afetados Abordagem terapêutica
Infeções pulmonares, insuficiência pulmonar respiratória
  • Promover a saúde pulmonar: Modulador CFTR, desportos de resistência
  • Melhorar a eliminação de secreções das vias aéreas: DNase inalada, solução salina hipertónica inalada, fisioterapia torácica
  • Prevenção de infeções: devem ser administradas toodas as vacinas do plano nacional de vacinação, vacina contra influenza anualmente, protocolo de alto risco para vacina pneumocócica, palivizumab para prevenção da infeção por vírus sincicial respiratório, precaução em todos os ambientes de saúde e evição de contactos
  • Broncodilatadores: agonista beta-2 adrenérgico antes da fisioterapia torácica, medicação inalatória ou se sintomático
  • Medidas anti-inflamatórias: azitromicina oral 3x/semana, ibuprofeno em alta dose se menos de 18 anos com boa função pulmonar
  • Prevenção de exacerbações agudas: tratamento da infeção crónica porP. aeruginosa com tobramicina inalada
  • Tratamento das exacerbações agudas: antibióticos sistémicos dirigidos ao isolamento das culturas, melhoria da eliminação de secreções das vias aéreas, corticosteroides apenas se asma concomitante
  • Indicação para transplantação: anteriormente pensado como “último recurso”, mas atualmente recomendado mais cedo no curso da doença se:
    • Rápido declínio do FEV1
    • Hipóxia (paO2 50 na ABG)
    • Hipertensão pulmonar significativa OU
    • Exacerbação com necessidade de ventilação com pressão positiva
Desidratação hipotónica/alcalose hipoclorémica
  • Hidratação adequada, ingestão de sal
  • Aumentar a ingestão de sal, se for expectável que fatores ambientais ou do paciente incentivem a perda de líquidos (por exemplo, calor, suor, vómitos, diarreia, febre)
Insuficiência pancreática exócrina Devem ser administradas enzimas pancreáticas (concentração definida de lipase e protease) a cada refeição
Má progressão estaturo-ponderal
  • Dieta de alto teor calórico, rica em gorduras
  • Nutrição entérica via sonda nasogástrica
Défices vitamínicos e minerais Suplementação profilática de vitaminas lipossolúveis em doses supranormais, suplementação com minerais e oligoelementos
Diabetes relacionado com a FQ
  • Diferente da diabetes tipo 1 e tipo 2; diferentes recomendações dietéticas
  • Tratamento com insulina.

Prognóstico

  • Com o tratamento ideal, os pacientes com FQ têm uma expectativa média de vida de 45 anos.
  • 50% dos pacientes morrem antes dos 18 anos por insuficiência respiratória.
  • O prognóstico depende de vários fatores:
    • Idade
    • Sexo feminino
    • Variante genética
    • Colonização por agentes patogénicos multirresistentes
    • Função pulmonar
    • Complicações
    • Acesso a cuidados médicos

Diagnóstico Diferencial

As seguintes condições estão relacionadas com a fibrose quística:

  • Bronquiectasias: uma condição crónica com espessamento das paredes brônquicas por inflamação e infeção. Esta condição é caracterizada pela ampliação permanente de secções das vias respiratórias intrapulmonares. Os pacientes têm frequentemente crises de dificuldade respiratória, apresentando tosse crónica produtiva.
  • Pneumonia: inflamação aguda ou crónica do parênquima pulmonar causada por infeção bacteriana, vírica ou fúngica. A pneumonia também pode ser causada por ativadores tóxicos após inalação de substâncias tóxicas, processos imunológicos ou radioterapia.
  • Má absorção: um distúrbio que envolve a incapacidade de absorver nutrientes dos alimentos, tais como hidratos de carbono, gorduras, minerais, proteínas ou vitaminas. A intolerância à lactose e a doença celíaca estão relacionadas com a má absorção.
  • Má progressão estaturo-ponderal: crianças com aumento de peso ou altura mais lentamente, comparativamente com outras crianças de idade ou sexo semelhantes. Normalmente, apresentam um subdesenvolvimento das habilidades motoras adquiridas na primeira infância, tais como virar-se, ficar de pé e andar.
  • Desidratação: causada pela perda excessiva de fluidos corporais. A água perde-se através das células do corpo, levando a uma diminuição líquida do volume total de água no corpo.
  • Prolapso retal: uma condição na qual o reto perde os seus pontos de fixação, prolapsando através do ânus. O tratamento definitivo requer cirurgia.
  • Aspergilose broncopulmonar alérgica: resposta de hipersensibilidade ao fungo Aspergillus. Os pacientes mais frequentemente afetados têm asma ou fibrose quística.
  • Cirrose biliar: uma doença crónica em que os ductos biliares são lentamente destruídos. Estes pacientes frequentemente desenvolvem cirrose, devido também ao excesso de bílis acumulada a nível hepático.
  • Asma: uma condição inflamatória crónica caracterizada por obstrução reversível do fluxo de ar nas vias aéreas inferiores. Os pacientes apresentam sibilos intermitentes ou persistentes, tosse e dispneia. O diagnóstico é geralmente confirmado por testes de função pulmonar, que revelam um padrão obstrutivo reversível. O tratamento varia segundo a gravidade e inclui broncodilatadores e corticosteroides inalados para controlo da inflamação.
  • Discinesia ciliar primária: um distúrbio genético raro, autossómico recessivo, que provoca disfunção do epitélio ciliar. No início da infância, os pacientes apresentam rinossinusite recorrente, otites, infeções respiratórias e eventuais bronquiectasias. A discinesia ciliar primária está frequentemente associada com situs inversus e infertilidade.

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