Diarreia em Idade Pediátrica

A diarreia é definida por uma passagem de grandes quantidades de fezes que são frequentemente moles, líquidas ou aquosas, resultando na perda excessiva de líquidos e eletrólitos. A diarreia é uma das doenças mais comuns nas crianças, representando a maior percentagem de morbilidade e mortalidade em todo o mundo na faixa etária pediátrica. A maioria dos casos são infeciosos, causados por rotavírus, enquanto os restantes são causados por bactérias (Escherichia coli, Salmonella) e parasitas (Entamoeba histolytica). O tratamento baseia-se principalmente na reidratação; a antibioterapia só é usada quando indicada. O prognóstico é excelente se a diarreia for tratada prontamente.

Última atualização: Jan 17, 2024

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

Descrição Geral

Definição

A diarreia é definida como o excesso de produção de fezes, frequentemente moles ou aquosas.

A quantificação da produção de fezes varia:

  • > 10 mL/kg/dia em lactentes e > 200 g/dia em crianças maiores, causando perda excessiva de líquidos e eletrólitos
  • Passagem de ≥ 3 fezes aquosas ou soltas por dia (definição da OMS)

Classificação

  • Por tempo de evolução:
    • Aguda, se durar ≤ 2 semanas
    • Crónica, se durar > 2 semanas
  • Pela etiologia:
    • Osmótica
    • Secretória
    • Inflamatória
    • Relacionada com a motilidade

Epidemiologia

  • Principal causa de morbilidade e mortalidade em todo o mundo:
    • Nos países desenvolvidos, a diarreia aguda é mais comum e está associada a menores taxas de morbilidade e mortalidade.
    • Nos países em desenvolvimento, a diarreia crónica é mais comum e mais letal.
  • A doença mais comum da criança saudável:
    • A nível mundial, as crianças < 5 anos têm uma média de 2-3 episódios por ano.
  • A forma mais comum é a diarreia vírica:
    • O Rotavirus é o agente causal mais comum.

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Etiologia

Apresentação aguda

Bebés e crianças pequenas:

  • Infeciosa:
    • Gastroenterite vírica (rotavírus (mais comum), vírus Norwalk (mais frequentemente em passageiros de navios de cruzeiro))
    • Enterite bacteriana (Escherichia coli (frequentemente vista em berçários e creches), Salmonella (ovos, leite, aves, répteis, animais domésticos), Shigella (alimentos contaminados), Campylobacter (alimentos contaminados), Yersinia (animais domésticos, alimentos contaminados), Clostridium difficile (uso prévio de antibióticos), Staphylococcus aureus (produtos derivados de ovos))
    • Parasitária (Entamoeba histolytica, Giardia (frequentemente visto em caminheiros), Cryptosporidium)
    • Infeções sistémicas
  • Não infecciosa:
    • Associada a antibióticos
    • Colite tóxica de Hirschsprung
    • Abstinência neonatal de narcóticos
    • Hiperplasia adrenal congénita

Crianças mais velhas:

  • Infeciosa:
    • Gastroenterite vírica
    • Enterite bacteriana
    • Intoxicação alimentar
  • Não infecciosa:
    • Diarreia associada a antibióticos (por exemplo, amoxicilina-ácido clavulânico)
    • Apendicite

Crónica

Bebés e crianças pequenas:

  • Infeciosa:
    • Parasitas
    • Abcesso apendicular
  • Má-absorção:
    • Deficiência pós-infecciosa de lactase
    • Intolerância às proteínas alimentares
    • Diarreia crónica inespecífica
    • Fibrose quística
    • Doença celíaca
  • Inflamatória:
    • Eosinofílica
    • Gastroenterite
  • Imunodeficiência:
    • Imunodeficiência combinada grave (SCID, da sigla em inglês)
    • Enteropatia por HIV
  • Endócrina: insuficiência adrenal
  • Outros:
    • Linfangiectasia
    • Toxinas
    • Perturbações intestinais congénitas raras

Crianças mais velhas:

  • Infeciosa:
    • Parasitas
    • Abcesso apendicular
  • Má-absorção:
    • Intolerância à lactose
    • Abuso de laxantes
    • Doença celíaca
    • Neoplasia secretadora
  • Inflamatória:
    • Gastroenterite eosinofílica
    • Síndrome do intestino irritável
  • Imunodeficiência: Enteropatia por HIV
  • Endócrina:
    • Insuficiência adrenal
    • Hiperparatiroidismo e hipoparatiroidismo
  • Outros:
    • Obstipação (encoprese)
    • Síndrome do intestino irritável
    • Toxinas

Classificações

Secretória

  • Mecanismo:
    • ↓ Absorção GI de fluidos/solutos
    • ↑ Secreção GI de fluidos/solutos
    • Defeitos no transporte de eletrólitos
    • Pode ser provocada por um secretagogo (por exemplo, toxina da cólera)
  • Agentes causadores:
    • Cólera
    • E. coli
    • Carcinóide
    • Neuroblastoma
    • Diarreia congénita por cloro
    • Clostridium difficile
    • Criptosporidíase (SIDA)
  • Apresentação clínica:
    • Persiste durante o jejum
    • A má absorção de sais biliares também pode aumentar a secreção de água a nível intestinal
    • Sem leucócitos nas fezes
Diarreia secretora

Patogénese da diarreia secretora:
A superativação dos canais de transporte de iões pode levar à secreção de eletrólitos e água no lúmen intestinal, resultando em diarreia.
Ca2+: cálcio
CaCC: canais de cloreto ativados por cálcio
cAMP: monofosfato de adenosina cíclico
CFTR: regulador de condutância transmembranar da fibrose cística
Cl: cloreto
K+: potássio
Na+: sódio
NKCC: cotransportador de cloreto de sódio-potássio

Imagem por Lecturio.

Osmótica

  • Mecanismo:
    • As substâncias indigestíveis alteram os gradientes osmóticos no trato gastrointestinal.
    • O fluido é retirado da mucosa GI em vez de ser absorvido por esta.
  • Agentes causadores:
    • Deficiência de lactase
    • Má-absorção glucose-galactose
    • Lactulose
    • Abuso de laxantes
  • Apresentação clínica:
    • Cessa com o jejum
    • ↑ hidrogénio respiratório na má-absorção de hidratos de carbono
    • Sem leucócitos nas fezes
Diarreia osmótica

Patogénese do défice da lactase (uma etiologia de diarreia osmótica):
A lactose não é degradada e permanece no lúmen do intestino delgado, absorvendo água e causando diarreia osmótica. A fermentação bacteriana da lactose resulta em sintomas como a distensão abdominal, flatulência e dor abdominal.

Imagem por Lecturio.

Aumento da motilidade

  • Mecanismo:
    • Intestinos patologicamente hiperativos
    • ↓ Tempo do trânsito gastrointestinal
    • Os alimentos não são digeridos e são rapidamente excretados.
  • Agentes causadores:
    • Síndrome do intestino irritável
    • Tirotoxicose
    • Síndrome de dumping pós-vagotomia
  • Característica clínica: A infeção pode contribuir para aumentar a motilidade.

Diminuição da motilidade

  • Mecanismo:
    • Defeito na(s) unidade(s) neuromuscular(es)
    • Estase, levando a um crescimento bacteriano excessivo
  • Agentes causadores:
    • Pseudo-obstrução
    • Ansa cega
    • Doença de Hirschsprung
  • Característica clínica: possível crescimento bacteriano excessivo

Diminuição da área de superfície

  • Mecanismo: ↓ capacidade funcional
  • Agentes causadores:
    • Síndrome do intestino curto
    • Doença celíaca
    • Enterite por rotavírus
  • Característica clínica: pode exigir uma dieta elementar associado a alimentação parentérica

Invasão da mucosa

  • Mecanismo:
    • Inflamação
    • Diminuição da reabsorção no cólon
    • Aumento da motilidade
  • Agentes causadores:
    • Salmonella
    • Shigella
    • Amebíase
    • Yersinia
    • Campylobacter
  • Característica clínica: Disenteria evidente com sangue, muco e leucócitos.

Apresentação Clínica

História

  • Sinais e sintomas associados importantes:
    • Febre
    • Sangue ou muco nas fezes
    • Exposição a animais de criação e répteis (Salmonella, E. coli) na síndrome hemolítica urémica em crianças
    • Alimentos suspeitos
    • Viagens recentes
    • Uso recente de antibióticos
  • Quando causado por um vírus:
    • 7-10 dias de diarreia aquosa
    • Vómitos
    • Algumas crianças podem ter sintomas respiratórios superiores.
  • Quando causado por bactérias:
    • Febre alta
    • Fezes com sangue
    • Dores abdominais
    • A infeção por Shigella pode ser acompanhada de convulsões.

Exame físico

  • Sinais de desidratação:
    • Mucosa oral seca
    • ↓ Turgor de pele
    • ↓ Reperfusão capilar
    • Taquicardia sustentada
    • A PA permanece geralmente elevada até a desidratação extrema.
  • Sinais de infeção sistémica:
    • ↓ Nível de consciência
    • Febre
  • Exame abdominal: Deve ser pesquisada a defesa e a exacerbação da dor à descompressão
  • Atraso no crescimento e aumento de peso
  • A inspeção perianal pode mostrar mariscas ou fissuras na doença de Crohn.
  • Infeção porYersinia associada a:
    • Artrite e erupção cutânea
    • Pseudo-apendicite
Tabela: Grau de desidratação em crianças
Ligeira Moderada Grave
Perda de peso
  • < 5% em bebés
  • < 3% em crianças mais velhas
  • 5%–10% em bebés
  • 3%–9% em crianças mais velhas
  • > 10% em bebés
  • > 9% em crianças mais velhas
Mucosas secas (1º sinal) +/-, parecem secas +, parecem mais secas
Turgor de pele (último sinal) + +/– ++/+
Depressão da fontanela anterior + ++/+
Estado Mental Normal Fadiga/irritabilidade Apatia/letargia
Enoftalmia + +
Respiração Normal Profunda, pode ser taquipneico Profunda e taquipneico
Frequência cardíaca (FC) Normal Aumentada Muito elevada
Hipotensão + +
Perfusão distal Normal
  • Extremidades frias
  • 3-4 segundos
  • Acrocianótico
  • > 4 segundos
Débito urinário Diminuído Oligúria Oligúria/anúria

Diagnóstico

Não é geralmente necessário estudo adcional. Este está indicado apenas em casos de desidratação moderada a grave, pacientes imunodeprimidos e septicemia e em casos crónicos.

  • Estudo laboratorial:
    • Perfil metabólico básico, em casos de desidratação grave, pode apresentar:
      • ↓ Glicose
      • ↑ BUN
      • ↑ Sódio e cloro
      • ↓ Bicarbonato
      • ↑ Creatinina
    • Análise microscópica das fezes, à procura de óvulos e parasitas
    • Cultura de fezes
    • Se houver suspeita de síndrome hemolítica urémica: testes específicos para E. coli O157:H7
    • Se houver suspeita de atraso de crescimento:
      • Fibrose quística: elastase nas fezes, teste de suor
      • Doença do intestino irritável (DII): ↑ marcadores inflamatórios, velocidade de sedimentação de eritrócitos (VS)/PCR, calprotectina fecal
      • Má-absorção: substâncias de redução de fezes, gordura fecal
      • Imunodeficiência: HIV, contagem linfocitária, perfil de Ig
  • Imagiologia diagnóstica: endoscopia/colonoscopia em casos especiais (por exemplo, crianças com emese não resolvida ou com suspeita de DII)

Tratamento

  • Apenas tratamento de suporte na maioria dos casos:
    • Reposição de fluidos em crianças
    • Recuperação nutricional adequada: Encorajar a alimentação durante e após episódios de diarreia.
  • Antibióticos em crianças:
    • Gravemente doentes
    • Imunocomprometidas
  • Prevenção:
    • Aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses de idade
    • Vacinação contra rotavírus e cólera em zonas endémicas
    • Educação sobre:
      • Lavagem e desinfeção adequadas dos alimentos
      • Eliminação adequada de resíduos alimentares
      • Ferver a água
      • Lavagem das mãos, especialmente depois da defecação, e outros hábitos de higiene
Fluid replacement treatment flowchart

Diagrama para a avaliação e tratamento da desidratação com base na severidade dos sintomas
ORT: terapia de substituição oral
PO: per os (usado para indicar administração oral)
NG: nasogástrica
(pelas siglas em inglês)

Imagem por Lecturio.

Relevância Clínica

  • Colite tóxica Hirschsprung: dilatação congénita não obstrutiva do cólon associada à toxicidade sistémica. Na colite tóxica de Hirschsprung, a inflamação da mucosa intestinal causa distensão e diarreia, e muitas vezes requer colectomia em idade jovem.
  • Apendicite: inflamação e infeção do apêndice causando dor no quadrante inferior direito e febre podendo apresentar vómitos e diarreia. Na pediatria, o exame de imagem de eleição na apendicite é a ecografia e o tratamento é feito através de cirurgia.
  • Fibrose quística: distúrbio autossómico recessivo causado por uma mutação no gene CFTR associada a infeções pulmonares crónicas e mau funcionamento do pâncreas. Para além dos sintomas pulmonares, os sintomas GI podem incluir diarreia crónica. As crianças apresentam sintomas em idade jovem, e o rastreio é realizado rotineiramente nos Estados Unidos.
  • Doença celíaca: também chamada enteropatia sensível ao glúten. A doença celíaca é caracterizada pela intolerância ao glúten e leva a diarreia recorrente. O exame diagnóstico de eleição é a biópsia do cólon, mas existem testes para o rastreio das fezes. O tratamento passa pela evicção do glúten.
  • Síndrome do intestino irritável: distúrbio de motilidade GI crónico sem causa orgânica, caracterizado por hábitos intestinais irregulares, dor abdominal e sintomas GI que incluem flatulência e diarreia. O tratamento é de suporte.
  • Doença de Crohn: doença inflamatória intestinal caracterizada por inflamação imunomediada do cólon. Pacientes com doenças inflamatórias intestinais apresentam frequentemente diarreia. O tratamento é com agentes imunossupressores, como esteroides.

Referências

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  3. Kotloff, K. L. (2020). Acute gastroenteritis in children. In: Kliegman, R.M., et al. (Eds.), Nelson Textbook of Pediatrics, pp. 201–2033.e2.
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