Abdómen Agudo

O abdómen agudo, que em muitos casos é uma emergência cirúrgica, é caracterizado pelo início súbito de dor abdominal que pode ser causada por inflamação, infeção, perfuração, isquemia ou obstrução. A localização da dor, as suas características e os sintomas associados (e.g., icterícia) são ferramentas importantes que ajudam a estreitar o diagnóstico diferencial. Os pacientes normalmente apresentam dor severa com rigidez e agravamento à descompressão abdominal associados. A avaliação laboratorial apresenta leucocitose, acidose e, em alguns casos, testes de função hepática alterados. A imagiologia ajuda a estreitar o diagnóstico diferencial; o exame de primeira linha é sempre a radiografia de tórax em pé, para avaliar a presença de pneumoperitoneu. O tratamento e o prognóstico do abdómen agudo dependem fortemente da causa subjacente. No entanto, na grande maioria dos casos, este é uma emergência cirúrgica com morbimortalidade associadas.

Última atualização: Jan 10, 2024

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

Visão Geral

Definição

O abdómen agudo é o conjunto de sinais e sintomas associados a dor abdominal severa e peritonite, que frequentemente requer intervenção cirúrgica emergente.

Epidemiologia

  • A dor abdominal, em geral, compreende 5%–10% das visitas ao Serviço de Urgência.
  • Cerca de ⅓ dos pacientes > 65 anos com dor abdominal necessita de intervenção cirúrgica.
  • Abdómen agudo:
    • Indivíduos jovens: a apendicite é a causa mais comum.
    • Indivíduos mais velhos com abdómen agudo têm mais frequentemente:
      • Doença biliar
      • Obstrução intestinal
      • Isquemia intestinal
      • Diverticulite

Etiologia

Causas não-cirúrgicas de abdómen agudo:

  • Causas endócrinas / metabólicas:
    • Porfiria aguda intermitente
    • Febre hereditária do Mediterrâneo
    • Uremia
    • Cetoacidose diabética
  • Causas hematológicas:
    • Crises de anemia falciforme
    • Leucemia aguda
  • Toxinas e drogas:
    • Envenenamento por chumbo
    • Abstinência de narcótico
    • Envenenamento por aranha viúva negra

Causas cirúrgicas de abdómen agudo:

  • Hemorragia:
    • Trauma
    • Rutura de aneurisma
    • Pancreatite hemorrágica (geralmente não requer intervenção cirúrgica inicialmente)
    • Laceração esofágica (síndrome de Mallory-Weiss)
    • Rotura de gravidez ectópica
  • Infeção:
    • Apendicite
    • Diverticulite
    • Abscesso hepático
    • Diverticulite de Meckel
  • Perfuração:
    • Úlcera gástrica perfurada
    • Divertículo perfurado
    • Tumor perfurado
    • Síndrome de Boerhaave
  • Obstrução:
    • Obstrução do intestino delgado ou do intestino grosso causada por aderências ou presença de lesão maligna
    • Volvo
    • Hérnia encarcerada
    • Invaginação intestinal
  • Isquemia:
    • Trombose ou embolia mesentérica
    • Torção de ovário
    • Colite isquémica
    • Torção testicular
    • Hérnia estrangulada
Differential diagnosis of acute abdomen

Diagnóstico diferencial da dor abdominal aguda

Imagem por Lecturio.

Anatomia

Limites da cavidade abdominal

  • Superiormente: diafragma
  • Inferiormente: abertura pélvica superior
  • Anteriormente: músculos da parede abdominal e costelas inferiores
  • Posteriormente: costelas, coluna vertebral e músculos paravertebrais

Anatomia externa

Para fins descritivos, o abdómen pode ser dividido em 4 quadrantes ou 9 regiões.

Quadrantes:

Dividido em 4 quadrantes por 2 linhas perpendiculares que se cruzam no umbigo:

Quadrante superior direito (QSD):
  • Lobo direito do fígado
  • Vesícula biliar
  • Piloro do estômago
  • Primeiras três porções do duodeno
  • Cabeça do pâncreas
  • Rim direito
  • Glândula suprarrenal direita
  • Cólon ascendente distal
  • Ângulo hepático do cólon
  • Metade direita do cólon transverso
Quadrante superior esquerdo (QSE):
  • Lobo esquerdo do fígado
  • Baço
  • Estômago
  • Jejuno
  • Íleo proximal
  • Corpo e cauda do pâncreas
  • Rim esquerdo
  • Glândula suprarrenal esquerda
  • Metade esquerda do cólon transverso
  • Ângulo esplénico do cólon
  • Porção superior do cólon descendente
Quadrante inferior direito (QID):
  • Maior parte do íleo
  • Cego e apêndice
  • Cólon ascendente proximal
  • Ureter proximal direito
  • Ovário direito
  • Trompa de Falópio direita
  • Metade direita do útero
  • Metade direita da bexiga
Quadrante inferior esquerdo (QIE):
  • Cólon descendente distal
  • Cólon sigmóide
  • Ureter esquerdo
  • Ovário esquerdo
  • Trompa de Falópio esquerda
  • Metade esquerda do útero
  • Metade esquerda da bexiga

Regiões:

O abdómen pode ser dividido em regiões por 4 linhas:

  • 2 linhas horizontais:
    • Linha subcostal: através da 10ª cartilagem costal
    • Linha intertubercular: liga os tubérculos das cristas ilíacas
  • 2 linhas verticais: linhas hemiclaviculares direita e esquerda
Hipocôndrio direito Região epigástrica Hipocôndrio esquerdo
Região lombar direita Região umbilical Região lombar esquerda
Fossa ilíaca direita Região hipogástrica Fossa ilíaca esquerda
Regiões do quadrante abdominal

Regiões do quadrante abdominal:
Existem (a) 9 regiões abdominais e (b) 4 quadrantes abdominais na cavidade peritoneal.

Imagem: “Abdominal quadrant regions” por OpenStax. Licença: CC BY 3.0, editado por Lecturio.

Anatomia interna

Relação dos órgãos intra-abdominais com a cavidade peritoneal:

  • Intraperitoneal:
    • Estômago e intestino delgado
    • Fígado
    • Baço
    • Cólon transverso
    • Bulbo duodenal e cauda do pâncreas
  • Extraperitoneal: bexiga
  • Os órgãos retroperitoneais podem ser agrupados na mnemónica SAD PUCKER:
    • Suprarenal glands (glândulas suprarrenais)
    • Aorta and inferior vena cava (aorta e veia cava inferior)
    • Duodenum (duodeno (exceto a 1ª porção))
    • Pancreas (pâncreas (exceto a cauda))
    • U reters (ureteres)
    • C olon (cólon descendente e ascendente)
    • Kidneys (rins)
    • E sophagus (esófago)
    • Rectum (reto)

Tipos de dor e inervação

  • Inervação visceral:
    • Inervação de órgãos internos
    • Perceciona a distensão de víscera oca (e.g., estômago, intestinos)
    • Dor:
      • Indefinida e mal localizada
      • Localização epigástrica, periumbilical ou hipogástrica
  • Inervação parietal:
    • Nervos que inervam o peritoneu
    • Permite a transmissão de dor derivada da irritação peritoneal, geralmente secundária à inflamação ou hemorragia interna
    • Dor mais fina, aguda e bem localizada
  • Dor referida:
    • Dor percecionada numa região diferente da origem da dor
    • Secundária à inervação de diferentes regiões anatómicas pelas mesmas raízes nervosas
    • Exemplo clássico: irritação diafragmática percecionada como dor no ombro, pelo facto de ambas as estruturas serem inervadas pelas raízes C3-C5

Apresentação Clínica

A principal característica do abdómen agudo é o início agudo de dor abdominal severa que pode ou não estar associada a outros sintomas. Uma história detalhada e um exame objetivo devem ser realizados para determinar a correta abordagem clínica.

História

  • Descrição da dor:
    • Início
    • Localização
    • Duração
    • Descrição
    • Irradiação
    • Gravidade
    • Fatores de agravamento ou de alivio: A peritonite é classicamente exacerbada pelo movimento.
  • Sintomas associados:
    • Náuseas
    • Vómitos
    • Diarreia
    • Melena ou hematoquezia
    • Febre
  • Antecedentes pessoais:
    • Episódios prévios semelhantes
    • Condições médicas subjacentes
    • Trauma precedente (acidente de carro, agressão)
    • Cirurgias abdominais prévias
    • Viagem recente, exposições a tóxicos, intoxicação alimentar

Exame físico

  • O exame deve ser sempre iniciado com a inspeção visual para que sejam avaliados certos aspetos, tais como:
    • Icterícia
    • Palidez
    • Esforço respiratório
    • Comportamento do paciente:
      • Tentativa de permanecer deitado e imóvel
      • Fácies de dor
  • Os sinais vitais devem ser obtidos e os sinais constitucionais observados:
    • Febre
    • Taquicardia
    • Hipotensão
    • Taquipneia
    • Alteração do estado mental
  • Um exame abdominal completo deve ser realizado:
    • Inspeção:
      • Distenção
      • Hematomas (sinal de Cullen ou Grey-Turner: pancreatite hemorrágica)
      • Saliência, descoloração da pele (sugestivo de hérnia estrangulada)
    • Percussão:
      • Timpanismo (distensão intestinal ou pneumoperitoneu)
      • Macicez (ascite ou sangue)
    • Auscultação:
      • O abdomén agudo está, geralmente, associado a ruídos intestinais hipoativos ou ausentes.
      • Pode haver ruídos intestinais hiperativos em casos de obstrução intestinal de alto grau
    • Palpação:
      • Normalmente, dor difusa em todos os quadrantes
      • A dor pode ser mais acentuada numa região abdominal, o que pode ajudar a estabelecer o diagnóstico
    • Sinais peritoneais:
      • Dor à descompressão: a dor agrava repentinamente quando a pressão manual é removida
      • Defesa: contração involuntária ou voluntária da parede abdominal
      • Rigidez: contração involuntária e constante dos músculos abdominais

Vídeos recomendados

Diagnóstico

Exames laboratoriais

  • Hemograma:
    • Leucócitos ↑
    • hemoglobina ↓ ou ↑ (hemorragia versus hemoconcentração devido à desidratação)
  • Painel metabólico básico: azoto ureico e creatinina ↑
  • Amilase e lipase: ↑ em casos de pancreatite
  • Painel de função hepática:
    • Bilirrubina total e direta normais ou ↑
    • Enzimas hepáticas normais ou ↑
  • Lactato: níveis elevados indicativos de sépsis/hipoperfusão
  • Urinálise: para descartar infeção do trato urinário
  • Exame microbiológico das fezes
  • Hemoculturas

Imagiologia

  • Radiografia
    • Radiografia de tórax em pé:
      • Exame imagiológico de primeira linha na avaliação de um paciente com dor abdominal para descartar víscera perfurada
      • Permite identificar ar livre intra-abdominal em volumes tão pequenos quanto 1 mL
      • Pode também revelar dilatação gástrica significativa
    • Radiografia de abdómen em decúbito lateral:
      • Permite detetar 5–10 mL de ar livre intra-abdominal
      • Permite identificar a presença de ansas intestinais dilatadas, níveis hidroaéreos ou volvo intestinal
  • Ecografia abdominal:
    • Quadrante superior direito:
      • Patologia da vesícula biliar
      • Patologia hepática
      • Avaliar a presença de líquido livre
    • Quadrante inferior direito:
      • Patologia do apêndice
      • Patologia ovariana e anexial
  • TAC:
    • Exame complementar de segunda linha (após realização de radiografias)
    • Contraste endovenoso e contraste oral (se tolerar ingestão oral)
    • Muito específico para patologia intra-abdominal:
      • Perfuração: ar livre
      • Obstrução intestinal com ansas intestinais dilatadas e presença de níveis hidroaéreos
      • Isquemia intestinal com pneumatose, espessamento da parede intestinal e presença de gás na veia porta
      • Hematoma intra-abdominal: com contraste EV permite identificar a origem vascular da hemorragia
Radiografia de tórax que demonstra pneumoperitoneu

Radiografia de tórax em pé demonstra pneumoperitoneu (setas)

Imagem: “A chest radiograph demonstrating pneumoperitoneum” por Manabu Kaneko et al. Licença: CC BY 4.0

Tratamento

O abdómen agudo é uma emergência ou urgência cirúrgica na grande maioria dos casos. A avaliação inicial deve determinar os casos que não requerem tratamento cirúrgico.

Tratamento inicial

Ressuscitação

  • O primeiro passo deve ser sempre a ressuscitação do paciente.
  • Obter acesso EV de grande calibre e confiável.
  • Fluidoterapia em bólus de 30 mL/kg para hipotensão e taquicardia
  • Correção eletrolítica
  • Proteção da via aérea/ventilação mecânica se alteração do estado mental ou dificuldade respiratória
  • Administração empírica de antibióticos EV de amplo espectro pode ser necessária
  • Tratamento da dor

Avaliação:

  • História clínica detalhada e exame objetivo
  • Realizar avaliação laboratorial, incluindo hemograma, painel metabólico básico, lactato e painel de função hepática.
  • Hemoculturas realizadas precocemente
  • Imagiologia:
    • Na maioria dos casos, há tempo para ser realizada pelo menos uma radiografia de tórax em pé, para avaliar a presença de ar livre.
    • A presença de ar livre no exame de imagem é indicação para intervenção cirúrgica imediata.
    • Num paciente estável e sem evidência de ar livre na radiografia, há tempo para ser realizada uma TC.

Tratamento cirúrgico

O tratamento cirúrgico é geralmente necessário, a menos que uma causa não cirúrgica tenha sido estabelecida. Se for necessária uma intervenção cirúrgica, existem duas abordagens:

  • Laparoscopia diagnóstica:
    • Abordagem minimamente invasiva, usando um laparoscópio para explorar a cavidade abdominal
    • Mais útil na avaliação abdominal inicial e para decidir se há necessidade de se optar pela via aberta
    • Em certos casos, a via laparoscópica pode ser utilizada na cirurgia de intervenção definitiva.
    • Tecnicamente limitada em áreas de difícil acesso e em intervenções cirúrgicas complexas
    • Deve ser evitada em casos de dilatação intestinal significativa pelo risco de perfuração com a inserção das portas de entrada e de instrumentos laparoscópicos
    • Não deve ser realizada em casos em que o diagnóstico é inequívoco e uma intervenção por via aberta será definitivamente necessária
  • Laparotomia exploradora:
    • Abordagem cirúrgica aberta, tipicamente através de uma incisão na linha média
    • Permite a inspeção e palpação de todos os quadrantes abdominais e respetivos conteúdos
    • Abordagem de eleição em casos de contaminação abdominal extensa com bílis ou conteúdo entérico
    • Permite a reparação da fonte de contaminação, bem como a irrigação da cavidade abdominal

Referências

  1. Squires, R. A., Postier, R. G. (2012). In Mattox, K. L., Evers, B. M., Beauchamp, R. D., Townsend, C. M. (Eds.), Sabiston Textbook of Surgery: The Biological Basis of Modern Surgical Practice, 19th ed. pp. 1141–1159.
  2. Penner, R. M., Fishman, M. B. (2020). Evaluation of the adult with abdominal pain. In Kunins L. (Ed.), UpToDate. Retrieved April 4, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/evaluation-of-the-adult-with-abdominal-pain
  3. Cahalane, M. J. (2019). Overview of gastrointestinal tract perforation. In Chen, W. (Ed.), UpToDate. Retrieved April 4, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/overview-of-gastrointestinal-tract-perforation
  4. Bordejanou, L., Yeh, D. D. (2020). Management of small bowel obstruction in adults. In Chen, W. (Ed.), UpToDate. Retrieved April 4, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/management-of-small-bowel-obstruction-in-adults
  5. Daley, B. J. (2019). Peritonitis and abdominal sepsis. In Roy, P. K. (Ed.), Medscape. Retrieved April 6, 2021, from https://emedicine.medscape.com/article/180234-overview#a2

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