A febre neutropénica é uma emergência médica definida como uma temperatura superior a 38,3 ℃ (100,9 ℉) ou > 38,0 ℃ (100,4 ℉) durante mais de 1 hora num doente com contagem absoluta de neutrófilos (CAN) < 1500 ou 1000 células/μL (também conhecidos como pacientes neutropénicos). Esta patologia é uma complicação comum e ameaçadora de vida associada a neoplasias hematológicas e a doentes submetidos a quimioterapia. Geralmente, os doentes são assintomáticos, e o único sinal é a presença de febre. O diagnóstico deve incluir uma história clínica detalhada, exame objetivo e uma avaliação laboratorial de rotina, associadas à investigação dirigida aos sintomas com colheita de material para cultura. O tratamento inicial inclui a administração de antibióticos empíricos, ajustados posteriormente de acordo com a resposta clínica e os resultados das culturas.
A febre neutropénica é definida como uma temperatura oral única > 38,3 ℃ (100,4 ℉) ou uma temperatura > 38,0 ℃ (100,4 ℉) durante, pelo menos, 1 hora e, associadamente, uma contagem absoluta de neutrófilos (CAN) < 1500 células/µL ou uma CAN em que é expectável que diminua para < 500 células/µL durante as próximas 48 horas.
Epidemiologia
A neutropenia febril desenvolve-se em:
10%–50% dos doentes com tumores sólidos
80% dos doentes com tumores hematológicos
50% dos doentes irão desenvolver uma infeção.
A fonte da infeção é evidente em 20%–30% dos casos
O exame objetivo/cultura não deteta o foco infeccioso/patogénio em 30%–60% dos casos.
80% das infeções ocorrem a partir da flora normalmente benigna ou comensal do paciente.
Os locais mais comuns de infeção incluem:
Pulmão
Pele
Sangue
Trato GI
Etiologia
Na maioria dos casos, a fonte da infeção é desconhecida (referida como febre de origem indeterminada (FOI)). A maioria das infeções documentadas são bacterianas.
As fontes mais comuns de bacteremia são:
Translocação de bactérias entéricas para a corrente sanguínea
Infeções da corrente sanguínea associadas ao cateter
Bactérias patogénicas mais comuns:
Gram-positivos (correspondem a mais de ½ dos casos):
Estafilococos coagulase-negativos (mais comuns)
Staphylococcus epidermidis
Staphylococcus haemolyticus
Staphylococcus aureus (incluindo o MRSA)
Enterococos (incluindo os resistentes à vancomicina)
Estreptococos do grupo Viridans
Streptococcus pyogenes
Streptococcus pneumoniae
Espécies de Bacillus
Gram-negativos:
Escherichia coli
Pseudomonas aeruginosa
Espécies de Klebsiella
Enterobacter
Fusobacterium
Espécies de Acinetobacter
Stenotrophomonas maltophilia
Fungos patogénicos mais comuns:
Espécies de Aspergillus
Espécies de Candida
Espécies de Fusarium
Fungos endémicos
Vírus patogénicos mais comuns:
Vírus herpes simplex
CMV
Vírus influenza
Vírus parainfluenza
Adenovírus
Vírus sincicial respiratório
Outros agentes patogénicos comuns:
Strongyloides stercoralis
Espécies de Leishmania
Espécies de Trypanosoma
Fisiopatologia
A combinação dos seguintes fatores contribui para o desenvolvimento de febre neutropénica:
Supressão da medula óssea induzida por quimioterapia
Substituição metastática da medula óssea
Produção/depuração anormal de anticorpos por neoplasias produtoras de anticorpos (por exemplo, mieloma múltiplo, leucemia linfocítica crónica), culminando numa asplenia funcional
Produção e função anormais das células T (linfoma)
Lesão da mucosa induzida por quimioterapia
Presença de possíveis fontes de infeção (cateteres invasivos)
Esfregaço de sangue periférico com escassos neutrófilos
Imagem: “Peripheral blood smear” por Melissa Zhao. Licença: CC BY 4.0
A presença de neutropenia pode minimizar os sintomas e sinais da infeção:
A ativação dos neutrófilos é responsável por muitos dos sintomas inflamatórios numa infeção
Neutropenia → ↓ ativação dos neutrófilos → ↓ libertação de citocinas → ↓ sintomas inflamatórios
A presença de febre pode ser o único sinal da presença de uma infeção.
Os sintomas mais comuns da neutropenia febril são:
Odinofagia
Aftas orais
Úlceras cutâneas
Tosse
Dispneia
Disúria
Polaquiúria e urgência miccional
Rubor e dor no local de inserção do cateter
Diagnóstico
Todos os doentes com neutropenia febril devem ser submetidos a uma história clínica e exame objetivo detalhados, bem como à realização de estudos diagnósticos.
História clínica
Uma história clínica detalhada deve incluir:
Revisão de aparelhos e sistemas para localizar o foco da infeção
Medicação atual
Tipo de neoplasia
Regime de quimioterapia atual
Revisão de qualquer exame laboratorial recente, em especial de estudos hematológicos.
Presença de alergias
Utilização de corticoides
Comorbilidades
História prévia de infeções
Profilaxia recente com antibióticos
Administração recente de fatores de crescimento hematopoiéticos
História prévia de transplante
Exame objetivo
Um exame objetivo completo deve incluir uma avaliação de:
Pele:
Eritema
Dor
Úlceras
Abcessos
Locais de inserção de cateteres centrais
Ectima gangrenoso (ocorre na infeção por P. aeruginosa)
Não realizar toque retal em doentes neutropénicos.
Área perineal:
Quisto pilonidal
Abcesso perirretal
Infeção vaginal/vulvar
Sistema neurológico:
Meningismo
Défice neurológico focal
Alteração do estado mental
Locais de inserção do cateter:
Eritema
Flutuação
Dor
Palpação de um cordão ao longo do trajeto da veia
Exames complementares de diagnóstico
Avaliação laboratorial:
Hemograma com contagem diferencial de leucócitos:
Neutropenia grave: CAN < 500 células/µL
Neutropenia profunda: CAN < 100 células/µL
Tipagem sanguínea
Estudos da coagulação
Parâmetros bioquímicos:
Função renal
Função hepática
Eletrólitos
Lactatos: Níveis elevados são sugestivos de sépsis.
Análise sumária de urina
PCR
VS
Procalcitonina (PCT):
Pró-hormona da calcitonina, produzida na presença de uma infeção sistémica em resposta às toxinas microbianas e aos mediadores inflamatórios do hospedeiro
Pode ajudar a diferenciar as etiologias infeciosas e não infeciosas de febre:
Elevada nas infeções bacterianas
Elevada nas infeções fúngicas
Pode ajudar na seleção e duração do tratamento com antibióticos:
Quando elevada, reforça a importância de iniciar um antibiótico
Quando não está elevada, reforça a decisão de suspender ou protelar o início da antibioterapia
Ajuda na prevenção de uma terapêutica com antibiótico prolongada/desnecessária
Cultura:
Hemocultura:
Devem ser obtidos 2 sets de hemoculturas através da punção venosa periférica de 2 locais diferentes, bem como de qualquer cateter venoso invasivo.
1 set é composto por 2 garrafas (aeróbia e anaeróbia).
A urocultura deve ser obtida se:
Doente sintomático
Doente com história prévia de infeção do trato urinário
Presença de algaliação
Cultura dirigida ao foco
Microscopia e cultura de fezes na presença de diarreia (Clostridium difficile)
Microscopia e cultura da expetoração na presença de sinais de infeção respiratória
Zaragatoa cutânea/lesão
Imagiologia:
Deve obter-se uma radiografia do tórax ou tomografia computadorizada.
Quando clinicamente indicado, devem ser realizados estudos imagiológicos adicionais.
Score da Multinational Association for Supportive Care in Cancer (MASCC)
Adequação do doente para um tratamento ambulatório versus hospitalar
Adequação do doente para antibioterapia oral versus IV
Duração prevista do tratamento
Disponibilidade do cuidador
Doentes de baixo risco:
Duração da neutropenia ≤ 7 dias
Sem comorbilidades
Funções hepática e renal normais
Pontuação MASCC ≥ 21
Doentes de alto risco:
Neutropenia profunda (CAN ≤ 100 células/µL)
Neutropenia prolongada (≥ 7 dias)
A realizar profilaxia com uma fluoroquinolona
Pontuação MASCC < 21
Patologias comórbidas:
Dor abdominal de novo
Hipotensão
Pneumonia
Alterações neurológicas
Evidência laboratorial de disfunção orgânica
Instabilidade hemodinâmica
O tratamento empírico deve ser iniciado na 1ª hora após a admissão.
Seleção dos antibióticos empíricos:
Ajustados à fonte de infeção conhecida/suspeita
Em doentes que já estão a realizar um tratamento profilático com uma fluoroquinolona, deve ser dado um antibiótico beta-lactâmico antipseudomónico
Se a fonte da infeção é desconhecida:
Cobertura de largo espectro
Considerar a avaliação por um especialista em doenças infecciosas.
Tabela: Score para o índice de risco da Multinational Association for Supportive Care in Cancer (MASCC)
Características
Pontuação
Carga da doença: assintomática ou sintomas ligeiros
5
Carga da doença: sintomas moderados
3
Carga da doença: sintomas graves
0
Ausência de hipotensão
5
Ausência de doença pulmonar obstrutiva crónica
4
Tumor sólido ou neoplasia hematológica sem infeção fúngica prévia
4
Ausência de desidratação com necessidade de fluidoterapia parentérica
3
Tratamento em ambulatório
2
Idade <60 anos
2
Doentes de baixo risco
Os doentes de baixo risco são tratados no ambulatório ou inicialmente em regime de internamento e, a seguir, são transferidos para o ambulatório com acompanhamento frequente (antibioterapia oral).
Ausência de alergia à penicilina: levofloxacina/ciprofloxacina mais amoxicilina-clavulanato
Alergia à penicilina: clindamicina mais levofloxacina/ciprofloxacina
Outros: moxifloxacina em monoterapia
Inicialmente, não está recomendado nenhum tratamento antifúngico.
Quando a febre persiste por ≥ 4-7 dias, devem ser administrados antifúngicos de largo espectro.
Doentes de alto risco
Os doentes de alto risco devem ser tratados em regime de internamento (antibioterapia IV).
Ausência de alergia à penicilina:
Piperacilina–tazobactam
Meropenem
Imipenem–cilastatina
Cefepime
Caso complicado ou resistência a antibióticos: Deve adicionar-se um aminoglicosídeo aos regimes acima.
Gentamicina
Amicacina
Tobramicina
Alergia à penicilina:
Ausência de profilaxia com uma fluoroquinolona: ciprofloxacina mais clindamicina
Sob profilaxia com uma fluoroquinolona: aztreonam mais vancomicina
Doentes com enterocolite neutropénica:
Piperacilina – tazobactam
Carbapenem
Cefalosporina antipseudomónica mais metronidazol
Organismos resistentes à antibioterapia:
S. aureus resistente à meticilina:
Daptomicina
Linezolida
Vancomicina
Enterococos resistentes à vancomicina (VRE, pela sigla em inglês):
Daptomicina
Linezolida
ESBL:
Carbapenem
Carbapenemase de Klebsiella pneumoniae (KPC, pela sigla em inglês):
Polimixina B
Colistina
Tigeciclina
Indicações para a adição de vancomicina:
Instabilidade hemodinâmica
Pneumonia
Hemoculturas positivas para bactérias gram-positivas
Infeção da pele ou tecidos moles
Infeção associada ao cateter
Colonização com MRSA, Streptococcus resistente à penicilina
Tratamento antifúngico:
Indicações:
Doente instável e
A febre persiste > 4–7 dias
Fármacos:
Anfotericina B (aspergilose invasiva)
Voriconazol (aspergilose invasiva)
Itraconazol
Posaconazol
Caspofungina (candidíase)
Micafungina
Tratamento antivírico:
Indicações:
Doença vírica ativa por herpes simplex/varicela zoster
Transplante de medula óssea recente/atual
Fármacos
Aciclovir para o herpes simplex
Aciclovir para o varicela zoster
Inibidores da neuraminidase na infeção suspeita/confirmada por influenza
Duração do tratamento
Identificação da fonte de infeção:
Duração do tratamento ajustada consoante a infeção em específico e
CAN ≥ 500 células/µL
Fonte de infeção desconhecida:
Febre resolvida ≥ 48 horas e
CAN ≥ 500 células/µL
Tratamento de suporte
Fluidos IV
Não está recomendada a administração do fator estimulador de colónias (CSF, pela sigla em inglês)
Indicações para a remoção de cateteres invasivos:
Infeção do túnel ou da porta do cateter
Sépsis (se a fonte infecciosa for desconhecida)
Endocardite
Embolia séptica
Infeção que persiste há > 72 horas apesar da antibioterapia
Infeção causada por:
S. aureus
Streptococcus
Fungos
Micobactérias não tuberculosas
Profilaxia
Indicações:
Doentes de alto risco
Neutropenia profunda
Neutropenia prolongada
Fármacos:
Levofloxacina
Ciprofloxacina
Cefdinir
Cefpodoxima
Azóis
Trimetoprim-sulfametoxazol (pneumonia por Pneumocystis jirovecii )
Diagnóstico Diferencial
Reação transfusional: complicação associada a tratamentos transfusionais (podem ser de derivados ou do sangue completo). Esta reação apresenta-se com febre, arrepios, urticária, prurido, dispneia, hipotensão e dificuldade respiratória. O diagnóstico baseia-se no surgimento de sintomas durante ou após a transfusão. O tratamento inclui a interrupção da transfusão, administração de fluidos IV, anti-histamínicos e antipiréticos.
Febre neoplásica: síndrome paraneoplásica causada por certas neoplasias (principalmente hematológicas). O único sintoma à apresentação é febre, sem sinais de infeção ou reação medicamentosa. A febre neoplásica é um diagnóstico de exclusão. A administração de naproxeno pode diminuir a temperatura. O tratamento inclui tratar a doença subjacente e o controlo dos sintomas com AINEs, paracetamol e corticoides.
Referências
Nara, K., Yamamoto, T., Sato, Y. et al. Low pretherapy skeletal muscle mass index is associated with an increased risk of febrile neutropenia in patients with esophageal cancer receiving docetaxel + cisplatin + 5-fluorouracil (DCF) therapy. Support Care Cancer 31, 150 (2023). https://doi.org/10.1007/s00520-023-07609-6
Freifeld, A. G. et al. (2011). Clinical practice guideline for the use of antimicrobial agents in neutropenic patients with cancer: 2010 update by the Infectious Diseases society of America. Clinical Infectious Diseases 52(4):e56–e93. https://doi.org/10.1093/cid/cir073
Robinson, J. O., Lamoth, F., Bally, F., Knaup, M., Calandra, T., Marchetti, O. (2011). Monitoring procalcitonin in febrile neutropenia: what is its utility for initial diagnosis of infection and reassessment in persistent fever?. PloS One 6(4):e18886. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0018886
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