Febre Neutropénica

A febre neutropénica é uma emergência médica definida como uma temperatura superior a 38,3 ℃ (100,9 ℉) ou > 38,0 ℃ (100,4 ℉) durante mais de 1 hora num doente com contagem absoluta de neutrófilos (CAN) < 1500 ou 1000 células/μL (também conhecidos como pacientes neutropénicos). Esta patologia é uma complicação comum e ameaçadora de vida associada a neoplasias hematológicas e a doentes submetidos a quimioterapia. Geralmente, os doentes são assintomáticos, e o único sinal é a presença de febre. O diagnóstico deve incluir uma história clínica detalhada, exame objetivo e uma avaliação laboratorial de rotina, associadas à investigação dirigida aos sintomas com colheita de material para cultura. O tratamento inicial inclui a administração de antibióticos empíricos, ajustados posteriormente de acordo com a resposta clínica e os resultados das culturas.

Última atualização: Apr 27, 2025

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

Descrição Geral

Definição

A febre neutropénica é definida como uma temperatura oral única > 38,3 ℃ (100,4 ℉) ou uma temperatura > 38,0 ℃ (100,4 ℉) durante, pelo menos, 1 hora e, associadamente, uma contagem absoluta de neutrófilos (CAN) < 1500 células/µL ou uma CAN em que é expectável que diminua para < 500 células/µL durante as próximas 48 horas.

Epidemiologia

  • A neutropenia febril desenvolve-se em:
    • 10%–50% dos doentes com tumores sólidos
    • 80% dos doentes com tumores hematológicos
  • 50% dos doentes irão desenvolver uma infeção.
  • A fonte da infeção é evidente em 20%–30% dos casos
  • O exame objetivo/cultura não deteta o foco infeccioso/patogénio em 30%–60% dos casos.
  • 80% das infeções ocorrem a partir da flora normalmente benigna ou comensal do paciente.
  • Os locais mais comuns de infeção incluem:
    • Pulmão
    • Pele
    • Sangue
    • Trato GI

Etiologia

Na maioria dos casos, a fonte da infeção é desconhecida (referida como febre de origem indeterminada (FOI)). A maioria das infeções documentadas são bacterianas.

As fontes mais comuns de bacteremia são:

  • Translocação de bactérias entéricas para a corrente sanguínea
  • Infeções da corrente sanguínea associadas ao cateter

Bactérias patogénicas mais comuns:

  • Gram-positivos (correspondem a mais de ½ dos casos):
    • Estafilococos coagulase-negativos (mais comuns)
      • Staphylococcus epidermidis
      • Staphylococcus haemolyticus
    • Staphylococcus aureus (incluindo o MRSA)
    • Enterococos (incluindo os resistentes à vancomicina)
    • Estreptococos do grupo Viridans
    • Streptococcus pyogenes
    • Streptococcus pneumoniae
    • Espécies de Bacillus
  • Gram-negativos:
    • Escherichia coli
    • Pseudomonas aeruginosa
    • Espécies de Klebsiella
    • Enterobacter
    • Fusobacterium
    • Espécies de Acinetobacter
    • Stenotrophomonas maltophilia

Fungos patogénicos mais comuns:

  • Espécies de Aspergillus
  • Espécies de Candida
  • Espécies de Fusarium
  • Fungos endémicos

Vírus patogénicos mais comuns:

  • Vírus herpes simplex
  • CMV
  • Vírus influenza
  • Vírus parainfluenza
  • Adenovírus
  • Vírus sincicial respiratório

Outros agentes patogénicos comuns:

  • Strongyloides stercoralis
  • Espécies de Leishmania
  • Espécies de Trypanosoma

Fisiopatologia

A combinação dos seguintes fatores contribui para o desenvolvimento de febre neutropénica:

  • Supressão da medula óssea induzida por quimioterapia
  • Substituição metastática da medula óssea
  • Produção/depuração anormal de anticorpos por neoplasias produtoras de anticorpos (por exemplo, mieloma múltiplo, leucemia linfocítica crónica), culminando numa asplenia funcional
  • Produção e função anormais das células T (linfoma)
  • Lesão da mucosa induzida por quimioterapia
  • Presença de possíveis fontes de infeção (cateteres invasivos)
Esfregaço de sangue periférico mostrando hemácias normocrômicas com anisocitose:poiquilocitose - neutropenia

Esfregaço de sangue periférico com escassos neutrófilos

Imagem: “Peripheral blood smear” por Melissa Zhao. Licença: CC BY 4.0

Apresentação Clínica

A presença de neutropenia pode minimizar os sintomas e sinais da infeção:

  • A ativação dos neutrófilos é responsável por muitos dos sintomas inflamatórios numa infeção
  • Neutropenia → ↓ ativação dos neutrófilos → ↓ libertação de citocinas → ↓ sintomas inflamatórios

A presença de febre pode ser o único sinal da presença de uma infeção.

Os sintomas mais comuns da neutropenia febril são:

  • Odinofagia
  • Aftas orais
  • Úlceras cutâneas
  • Tosse
  • Dispneia
  • Disúria
  • Polaquiúria e urgência miccional
  • Rubor e dor no local de inserção do cateter

Diagnóstico

Todos os doentes com neutropenia febril devem ser submetidos a uma história clínica e exame objetivo detalhados, bem como à realização de estudos diagnósticos.

História clínica

Uma história clínica detalhada deve incluir:

  • Revisão de aparelhos e sistemas para localizar o foco da infeção
  • Medicação atual
  • Tipo de neoplasia
  • Regime de quimioterapia atual
  • Revisão de qualquer exame laboratorial recente, em especial de estudos hematológicos.
  • Presença de alergias
  • Utilização de corticoides
  • Comorbilidades
  • História prévia de infeções
  • Profilaxia recente com antibióticos
  • Administração recente de fatores de crescimento hematopoiéticos
  • História prévia de transplante

Exame objetivo

Um exame objetivo completo deve incluir uma avaliação de:

  • Pele:
    • Eritema
    • Dor
    • Úlceras
    • Abcessos
    • Locais de inserção de cateteres centrais
    • Ectima gangrenoso (ocorre na infeção por P. aeruginosa)
  • Fundo ótico: sinais de embolia séptica
  • Seios perinasais
    • Dor
    • Aparência “húmida” (azulados, pálidos, edemaciados)
  • Boca:
    • Úlceras
    • Doença periodontal
    • Leucoplasia
  • Pulmões
  • Abdómen:
    • Avaliação da mucosa visceral
    • Não realizar toque retal em doentes neutropénicos.
  • Área perineal:
    • Quisto pilonidal
    • Abcesso perirretal
    • Infeção vaginal/vulvar
  • Sistema neurológico:
    • Meningismo
    • Défice neurológico focal
    • Alteração do estado mental
  • Locais de inserção do cateter:
    • Eritema
    • Flutuação
    • Dor
    • Palpação de um cordão ao longo do trajeto da veia

Exames complementares de diagnóstico

Avaliação laboratorial:

  • Hemograma com contagem diferencial de leucócitos:
    • Neutropenia grave: CAN < 500 células/µL
    • Neutropenia profunda: CAN < 100 células/µL
  • Tipagem sanguínea
  • Estudos da coagulação
  • Parâmetros bioquímicos:
    • Função renal
    • Função hepática
    • Eletrólitos
  • Lactatos: Níveis elevados são sugestivos de sépsis.
  • Análise sumária de urina
  • PCR
  • VS
  • Procalcitonina (PCT):
    • Pró-hormona da calcitonina, produzida na presença de uma infeção sistémica em resposta às toxinas microbianas e aos mediadores inflamatórios do hospedeiro
    • Pode ajudar a diferenciar as etiologias infeciosas e não infeciosas de febre:
      • Elevada nas infeções bacterianas
      • Elevada nas infeções fúngicas
    • Pode ajudar na seleção e duração do tratamento com antibióticos:
      • Quando elevada, reforça a importância de iniciar um antibiótico
      • Quando não está elevada, reforça a decisão de suspender ou protelar o início da antibioterapia
    • Ajuda na prevenção de uma terapêutica com antibiótico prolongada/desnecessária

Cultura:

  • Hemocultura:
    • Devem ser obtidos 2 sets de hemoculturas através da punção venosa periférica de 2 locais diferentes, bem como de qualquer cateter venoso invasivo.
    • 1 set é composto por 2 garrafas (aeróbia e anaeróbia).
  • A urocultura deve ser obtida se:
    • Doente sintomático
    • Doente com história prévia de infeção do trato urinário
    • Presença de algaliação
  • Cultura dirigida ao foco
    • Microscopia e cultura de fezes na presença de diarreia (Clostridium difficile)
    • Microscopia e cultura da expetoração na presença de sinais de infeção respiratória
    • Zaragatoa cutânea/lesão

Imagiologia:

  • Deve obter-se uma radiografia do tórax ou tomografia computadorizada.
  • Quando clinicamente indicado, devem ser realizados estudos imagiológicos adicionais.

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Tratamento

Abordagem geral

  • Considerações para avaliação de risco:
    • Score da Multinational Association for Supportive Care in Cancer (MASCC)
    • Adequação do doente para um tratamento ambulatório versus hospitalar
    • Adequação do doente para antibioterapia oral versus IV
    • Duração prevista do tratamento
    • Disponibilidade do cuidador
  • Doentes de baixo risco:
    • Duração da neutropenia ≤ 7 dias
    • Sem comorbilidades
    • Funções hepática e renal normais
    • Pontuação MASCC ≥ 21
  • Doentes de alto risco:
    • Neutropenia profunda (CAN ≤ 100 células/µL)
    • Neutropenia prolongada (≥ 7 dias)
    • A realizar profilaxia com uma fluoroquinolona
    • Pontuação MASCC < 21
    • Patologias comórbidas:
      • Dor abdominal de novo
      • Hipotensão
      • Pneumonia
      • Alterações neurológicas
      • Evidência laboratorial de disfunção orgânica
      • Instabilidade hemodinâmica
  • O tratamento empírico deve ser iniciado na 1ª hora após a admissão.
  • Seleção dos antibióticos empíricos:
    • Ajustados à fonte de infeção conhecida/suspeita
    • Em doentes que já estão a realizar um tratamento profilático com uma fluoroquinolona, deve ser dado um antibiótico beta-lactâmico antipseudomónico
    • Se a fonte da infeção é desconhecida:
      • Cobertura de largo espectro
      • Considerar a avaliação por um especialista em doenças infecciosas.
Tabela: Score para o índice de risco da Multinational Association for Supportive Care in Cancer (MASCC)
Características Pontuação
Carga da doença: assintomática ou sintomas ligeiros 5
Carga da doença: sintomas moderados 3
Carga da doença: sintomas graves 0
Ausência de hipotensão 5
Ausência de doença pulmonar obstrutiva crónica 4
Tumor sólido ou neoplasia hematológica sem infeção fúngica prévia 4
Ausência de desidratação com necessidade de fluidoterapia parentérica 3
Tratamento em ambulatório 2
Idade <60 anos 2

Doentes de baixo risco

Os doentes de baixo risco são tratados no ambulatório ou inicialmente em regime de internamento e, a seguir, são transferidos para o ambulatório com acompanhamento frequente (antibioterapia oral).

  • Ausência de alergia à penicilina: levofloxacina/ciprofloxacina mais amoxicilina-clavulanato
  • Alergia à penicilina: clindamicina mais levofloxacina/ciprofloxacina
  • Outros: moxifloxacina em monoterapia
  • Inicialmente, não está recomendado nenhum tratamento antifúngico.
  • Quando a febre persiste por ≥ 4-7 dias, devem ser administrados antifúngicos de largo espectro.

Doentes de alto risco

Os doentes de alto risco devem ser tratados em regime de internamento (antibioterapia IV).

  • Ausência de alergia à penicilina:
    • Piperacilina–tazobactam
    • Meropenem
    • Imipenem–cilastatina
    • Cefepime
  • Caso complicado ou resistência a antibióticos: Deve adicionar-se um aminoglicosídeo aos regimes acima.
    • Gentamicina
    • Amicacina
    • Tobramicina
  • Alergia à penicilina:
    • Ausência de profilaxia com uma fluoroquinolona: ciprofloxacina mais clindamicina
    • Sob profilaxia com uma fluoroquinolona: aztreonam mais vancomicina
  • Doentes com enterocolite neutropénica:
    • Piperacilina – tazobactam
    • Carbapenem
    • Cefalosporina antipseudomónica mais metronidazol
  • Organismos resistentes à antibioterapia:
    • S. aureus resistente à meticilina:
      • Daptomicina
      • Linezolida
      • Vancomicina
    • Enterococos resistentes à vancomicina (VRE, pela sigla em inglês):
      • Daptomicina
      • Linezolida
    • ESBL:
      • Carbapenem
    • Carbapenemase de Klebsiella pneumoniae (KPC, pela sigla em inglês):
      • Polimixina B
      • Colistina
      • Tigeciclina
  • Indicações para a adição de vancomicina:
    • Instabilidade hemodinâmica
    • Pneumonia
    • Hemoculturas positivas para bactérias gram-positivas
    • Infeção da pele ou tecidos moles
    • Infeção associada ao cateter
    • Colonização com MRSA, Streptococcus resistente à penicilina
  • Tratamento antifúngico:
    • Indicações:
      • Doente instável e
      • A febre persiste > 4–7 dias
    • Fármacos:
      • Anfotericina B (aspergilose invasiva)
      • Voriconazol (aspergilose invasiva)
      • Itraconazol
      • Posaconazol
      • Caspofungina (candidíase)
      • Micafungina
  • Tratamento antivírico:
    • Indicações:
      • Doença vírica ativa por herpes simplex/varicela zoster
      • Transplante de medula óssea recente/atual
    • Fármacos
      • Aciclovir para o herpes simplex
      • Aciclovir para o varicela zoster
      • Inibidores da neuraminidase na infeção suspeita/confirmada por influenza

Duração do tratamento

  • Identificação da fonte de infeção:
    • Duração do tratamento ajustada consoante a infeção em específico e
    • CAN ≥ 500 células/µL
  • Fonte de infeção desconhecida:
    • Febre resolvida ≥ 48 horas e
    • CAN ≥ 500 células/µL

Tratamento de suporte

  • Fluidos IV
  • Não está recomendada a administração do fator estimulador de colónias (CSF, pela sigla em inglês)
  • Indicações para a remoção de cateteres invasivos:
    • Infeção do túnel ou da porta do cateter
    • Sépsis (se a fonte infecciosa for desconhecida)
    • Endocardite
    • Embolia séptica
    • Infeção que persiste há > 72 horas apesar da antibioterapia
    • Infeção causada por:
      • S. aureus
      • Streptococcus
      • Fungos
      • Micobactérias não tuberculosas

Profilaxia

  • Indicações:
    • Doentes de alto risco
    • Neutropenia profunda
    • Neutropenia prolongada
  • Fármacos:
    • Levofloxacina
    • Ciprofloxacina
    • Cefdinir
    • Cefpodoxima
    • Azóis
    • Trimetoprim-sulfametoxazol (pneumonia por Pneumocystis jirovecii )

Diagnóstico Diferencial

  • Reação transfusional: complicação associada a tratamentos transfusionais (podem ser de derivados ou do sangue completo). Esta reação apresenta-se com febre, arrepios, urticária, prurido, dispneia, hipotensão e dificuldade respiratória. O diagnóstico baseia-se no surgimento de sintomas durante ou após a transfusão. O tratamento inclui a interrupção da transfusão, administração de fluidos IV, anti-histamínicos e antipiréticos.
  • Febre neoplásica: síndrome paraneoplásica causada por certas neoplasias (principalmente hematológicas). O único sintoma à apresentação é febre, sem sinais de infeção ou reação medicamentosa. A febre neoplásica é um diagnóstico de exclusão. A administração de naproxeno pode diminuir a temperatura. O tratamento inclui tratar a doença subjacente e o controlo dos sintomas com AINEs, paracetamol e corticoides.

Referências

  1. Nara, K., Yamamoto, T., Sato, Y. et al. Low pretherapy skeletal muscle mass index is associated with an increased risk of febrile neutropenia in patients with esophageal cancer receiving docetaxel + cisplatin + 5-fluorouracil (DCF) therapy. Support Care Cancer 31, 150 (2023). https://doi.org/10.1007/s00520-023-07609-6
  2. Baluch, A., Shewayish, S. (2019). Neutropenic Fever. In: Infections in Neutropenic Cancer Patients. Pages 105–117. https://doi.org/10.1007/978-3-030-21859-1_8
  3. Freifeld, A. G. et al. (2011). Clinical practice guideline for the use of antimicrobial agents in neutropenic patients with cancer: 2010 update by the Infectious Diseases society of America. Clinical Infectious Diseases 52(4):e56–e93. https://doi.org/10.1093/cid/cir073
  4. Denshaw-Burke, M. (2025). Neutropenic fever empiric therapy. Medscape. Retrieved April 27, 2025, from https://emedicine.medscape.com/article/2012185-overview
  5. Foggo, V., Cavenagh, J. (2015). Malignant causes of fever of unknown origin. Clinical Medicine 15(3):292–294. https://doi.org/10.7861/clinmedicine.15-3-292
  6. Robinson, J. O., Lamoth, F., Bally, F., Knaup, M., Calandra, T., Marchetti, O. (2011). Monitoring procalcitonin in febrile neutropenia: what is its utility for initial diagnosis of infection and reassessment in persistent fever?. PloS One 6(4):e18886. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0018886

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