Botulismo

O botulismo é uma síndrome neuroparalítica rara causada por Clostridium botulinum (C. botulinum). Uma neurotoxina fatal (toxina botulínica) é libertada causando vários graus de paralisia muscular e síndromes clínicas distintas. Os tipos mais comuns de botulismo são os transmitidos por alimentos e o tipo infantil. O botulismo manifesta-se com visão turva, insuficiência respiratória e paralisia flácida descendente simétrica. A caracterização inclui estado de consciência intacto, frequência cardíaca e pressão arterial normais, ausência de febre e de défices sensitivos. O diagnóstico é feito com base na clínica e pode ser confirmado pelo isolamento de bactérias ou toxinas nas fezes, amostras de feridas ou fontes de alimentos. A abordagem de tratamento de um caso de botulismo deve incluir o tratamento imediato da insuficiência respiratória, administração de antitoxina e terapêutica de suporte para a paralisia.

Última atualização: Dec 15, 2022

Responsibilidade editorial: Stanley Oiseth, Lindsay Jones, Evelin Maza

Descrição Geral

Definição

O botulismo é uma síndrome neuroparalítica rara causada pela bactéria Clostridium botulinum (C. botulinum), que liberta uma neurotoxina fatal (toxina botulínica), resultando em vários graus de paralisia muscular e síndromes clínicas distintas.

Epidemiologia

  • Aproximadamente 110 casos por ano nos EUA (doença rara)
  • Pode ocorrer em qualquer faixa etária
  • Sem transmissão de pessoa para pessoa
  • O C. botulinum é encontrado no solo e em sedimentos marinhos em todo o mundo.
  • Os tipos mais comuns são o botulismo alimentar e infantil.
  • O tipo menos comum é a toxemia intestinal do adulto.

Etiologia

  • Agente patogénico C. botulinum:
    • Bacilo gram-positivo
    • Bactéria anaeróbia formadora de esporos
    • Encontrado no solo e sedimentos marinhos em todo o mundo
    • 4 fenótipos distintos: I – IV
  • Toxina botulínica:
    • Proteína neurotóxica produzida por C. botulinum
    • Classificada em 7 serotipos: A – G
    • A, B, E e F causam doença em humanos.
    • A e B são usados comercialmente e clinicamente.
    • Bloqueia a libertação do neurotransmissor acetilcolina (ACh) na junção neuromuscular (JNM)
  • Condições favoráveis para o crescimento do agente patogénico e formação de esporos:
    • Baixa concentração de O2 ou nenhum O2 (condições anaeróbicas)
    • pH de 7 e superior
    • Faixa de temperatura ideal: 25℃ –37℃
    • Sobrevive em temperaturas tão baixas quanto 4 ℃ e tão altas quanto 100 ℃
Clostridium botulinum

Fotomicrografia da bactéria C. botulinum

Imagem: “Clostridium botulinum” por CDC. Licença: Public Domain

Classificação

Botulismo infantil

  • Modo de infeção: ingestão de esporos de C. botulinum
  • A toxina é produzida in vivo (as bactérias germinam no trato GI).
  • Comum em bebés <6 meses de idade (as defesas naturais ainda não se desenvolveram no intestino)
  • O produto que mais frequentemente causa o botulismo infantil é o mel cru.

Botulismo de origem alimentar

  • Modo de infeção: ingestão de alimentos contaminados com toxina C. botulinum
  • Frequentemente encontrado em alimentos enlatados inadequadamente com baixo teor de ácido e produtos alimentícios levemente preservados (e.g., produtos de carne fermentados, salgados ou defumados)
  • Perigoso: pode infectar muitas pessoas ao mesmo tempo que consomem alimentos da mesma origem

Botulismo da ferida

  • Modo de infeção: os esporos de C. botulinum entram numa ferida aberta e prosperam em condições anaeróbicas.
  • Forma rara de botulismo
  • Pode resultar da contaminação da ferida por solo, cascalho ou fraturas expostas tratadas de forma inadequada
  • Frequentemente associado ao uso abusivo de heroína de alcatrão preto

Botulismo iatrogénico

  • Modo de infeção: injeções de toxina botulínica para fins cosméticos ou terapêuticos/médicos (e.g., enxaqueca, contraturas, espasticidade)
  • Outra forma rara de botulismo
  • Uma preparação altamente concentrada da toxina pode causar botulismo iatrogénico.

Toxemia intestinal em adultos

  • Modo de infeção: ingestão de esporos de C. botulinum
  • Forma menos comum de botulismo
  • Semelhante ao botulismo infantil, mas ocorre em crianças mais velhas e adultos com alterações intestinais ou perturbação da flora intestinal normal (e.g., doença inflamatória intestinal)

Botulismo inalatório

  • Não ocorre naturalmente
  • Associado à libertação acidental ou intencional de toxina em aerossóis (botulismo associado ao bioterrorismo)
  • A apresentação clínica é semelhante ao botulismo de origem alimentar.
  • A dose letal é de 2ng/kg de peso corporal.

Fisiopatologia

As formas de exposição à toxina determinam o tipo de botulismo; a toxina não é absorvida pela pele intacta.

A exposição pode ocorrer pelos seguintes mecanismos:

  • Ingestão de toxina pré-formada
  • Inalação de toxina pré-formada
  • Produção de toxina por C. botulinum no trato GI
  • Produção de toxina por C. botulinum em tecido desvitalizado no local de uma ferida
  • Exposição à toxina por injeção para fins cosméticos ou terapêuticos/médicos

Mecanismo de patogénese:

  • A toxina botulínica é ativada por clivagem proteolítica na circulação e transportada para a junção neuromuscular (JNM).
  • A toxina botulínica existe na circulação como um polímero de uma cadeia leve e uma cadeia pesada.
  • A cadeia pesada da toxina liga-se a recetores no neurónio pré-sináptico e entra no neurónio pré-sináptico por endocitose mediada por recetor.
  • Uma vez dentro das vesículas endocíticas do neurónio pré-sináptico, a cadeia leve da toxina atravessa a membrana da vesícula endocítica e entra no citoplasma.
  • Uma vez no citoplasma, a cadeia leve liga-se às proteínas SNARE/SNAP, que estão envolvidas na libertação de ACh das vesículas pré-sinápticas, onde é armazenada.
  • A inibição da libertação de ACh impede que a ACh se ligue ao recetor de ACh, o que interrompe a contração muscular e leva à fraqueza/paralisia.
Efeitos da toxina botulínica

Efeito da toxina botulínica ao nível do JNM: inibição da libertação de ACh

Imagem por Lecturio.

Apresentação Clínica

Características Gerais

A apresentação clássica do botulismo inclui paralisia simétrica dos nervos cranianos e paralisia descendente. As 5 principais características do botulismo incluem:

  1. Ausência de febre
  2. Défices neurológicos simétricos: paralisia flácida descendente simétrica dos músculos voluntários (começa como fraqueza muscular proximal e progride distalmente)
  3. Estado de consciência intacto
  4. Frequência cardíaca normal ou lenta e pressão arterial normal
  5. Sem défices sensitivos (exceto visão turva)

As neuropatias cranianas são comuns em todos os tipos de botulismo. A apresentação clássica inclui os “4 Ds” (sintomas bulbares):

  1. Diplopia: o primeiro sintoma/sinal clínico geralmente é o envolvimento extraocular.
  2. Disartria
  3. Disfonia
  4. Disfagia

O botulismo apresenta achados autonómicos:

  • Pupilares (pupilas dilatadas, fixas)
  • Salivação reduzida
  • Lacrimejo reduzido
  • Íleo paralítico/obstipação grave
  • Dilatação gástrica
  • Distensão da bexiga/retenção urinária
  • Hipotensão ortostática

Botulismo infantil

  • Período de incubação: 3–30 dias após a entrada do esporo
  • Ocorre frequentemente em bebés <6 meses de idade
  • Obstipação: geralmente é o primeiro sinal
  • Sialorreia
  • Choro fraco
  • Irritabilidade
  • Crises convulsivas
  • Síndrome do bebé hipotónico:
    • Ptose bilateral
    • Perda de controlo da cabeça, movimentos frouxos/hipotonia
    • Fraqueza/letargia geral
    • Dificuldade na alimentação (sucção fraca)
Síndrome do bebé hipotónico

Apresentação importante no botulismo infantil: síndrome do bebé hipotónico

Imagem por Lecturio.

Botulismo de origem alimentar

  • Período de incubação: 12-36 horas após o consumo da toxina
  • Sintomas prodrómicos:
    • Náuseas, vómitos, diarreia e cólicas abdominais
    • A diarreia inicial (efeito direto da toxina no endotélio gastrointestinal) progride para obstipação (fruto da dominância das manifestações sistémicas na JNM).
  • Xerostomia
  • Dificuldade em engolir ou falar
  • Fraqueza facial simétrica
  • Visão turva
  • Neuropatias cranianas
  • Dificuldade em respirar

Botulismo da ferida

  • Período de incubação difícil de estimar (tempo de exposição geralmente incerto)
  • Os sintomas são semelhantes aos do botulismo de origem alimentar, exceto pela ausência de sintomas prodrómicos.
  • O botulismo de ferida manifesta-se com febre e leucocitose em cerca de 50% dos casos; outras formas de botulismo não costumam manifestar-se com febre
  • Dificuldade em engolir ou falar
  • Fraqueza facial simétrica
  • Visão turva ou dupla
  • Ptose
  • Dificuldade em respirar
  • Paralisia descendente
  • Inflamação no local da ferida
Ptose no botulismo

Ptose em crianças com botulismo: o doente está alerta e orientado.

Imagem: “Botulism1and2” por Herbert L. Fred, MD and Hendrik A. van Dijk. Licença: CC BY 2.0

Botulismo iatrogénico

  • Após a injeção de toxina botulínica para fins cosméticos ou terapêuticos/médicos
  • Ptose
  • Dificuldade em falar
  • Paralisia do rosto
  • Língua volumosa e fraca
  • Diminuição do reflexo do vómito

Toxemia intestinal em adultos

  • Semelhante ao botulismo infantil, mas ocorre em crianças mais velhas e adultos
  • Obstipação
  • Anorexia
  • Letargia
  • Paralisia descendente
  • Ptose

Botulismo inalatório

  • Os sintomas são semelhantes aos do botulismo de origem alimentar.
  • Pode desenvolver-se cedo e progredir rapidamente para insuficiência respiratória
  • Diarreia
  • Xerostomia
  • Dificuldade em engolir ou falar
  • Fraqueza facial simétrica
  • Visão turva
  • Neuropatias cranianas
  • Dificuldade em respirar

Diagnóstico

História

  • Consumo de alimentos enlatados
  • Sintomas semelhantes em indivíduos com exposição semelhante
  • História de uso de drogas injetáveis
  • História de uso cosmético/médico de toxina botulínica
  • Início agudo dos sintomas da síndrome do bebé hipotónico
  • História de consumo de mel em bebés

Exame físico

  • Início agudo de sintomas de neuropatia craniana
  • Fraqueza descendente simétrica
  • Ausência de febre
  • Doente alerta e consciente com sintomas neurológicos

Confirmação do diagnóstico

  • Isolamento de C. botulinum em fezes, amostra de ferida ou fonte de alimento
  • Deteção por ELISA ou PCR de toxina no soro, fezes, vómito ou fonte de alimento
  • Outros testes:
    • RMN ou TAC: para descartar outras razões para os sintomas neurológicos (e.g., acidente vascular cerebral)
    • Exame do LCR: para descartar meningite
    • Eletromiografia (EMG): para suspeita de botulismo infantil
    • Teste de Tensilon:
      • Para descartar miastenia gravis
      • Não é realizado atualmente (indisponível nos Estados Unidos) devido a uma alta ocorrência de falso-positivo

Tratamento

A história clínica e diagnóstico detalhados são importantes no botulismo, pois os exames complementares demoram. Se a história de um caso for altamente sugestiva de botulismo, o tratamento não deve ser adiado.

Abordagem geral

  • Hospitalização
  • Monitorizar os sinais de insuficiência respiratória:
    • Oximetria de pulso
    • Espirometria
    • Gasimetria arterial
    • Se competência da via aérea superior inadequada/em agravamento ou se doentes com capacidade vital < 30%, a intubação imediata está indicada.
  • Como cuidados de suporte, fornecer alimentação nasogástrica em pequenas quantidades para evitar aspiração.
  • Administração de antitoxina

Antitoxina

A antitoxina é a base do tratamento do botulismo. Duas formulações principais estão disponíveis nos Estados Unidos:

Antitoxina botulínica heptavalente:

  • Antitoxina heptavalente sérica equina: contém anticorpos contra 7 tipos de toxina botulínica
  • Liga-se a neurotoxinas circulantes e evita a ligação à JNM
  • A antitoxina não pode reverter a paralisia, mas pode prevenir a progressão da mesma.
  • O ideal é a administração de antitoxina dentro de 24 horas do início dos sintomas.
  • Considerações sobre a dosagem:
    • Adultos: 1 frasco
    • Crianças de 1–17 anos de idade: 20%–100% da dose do adulto
    • Bebés < 1 ano de idade: 10% da dose do adulto
  • A anafilaxia é um efeito adverso (os testes cutâneos antes da administração não são recomendados pelo Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC, pela sigla em inglês)).

Imunoglobulina botulínica humana (BIG-IV, pela sigla em inglês):

  • Tratamento preferencial para bebés < 1 ano com diagnóstico de botulismo infantil
  • Administração IV
  • Ainda não foi relatado nenhum efeito adverso sério.

Terapia específica consoante o tipo

  • Botulismo de origem alimentar: Na ausência de íleus, laxantes e enemas podem ser considerados para eliminar a toxina e aliviar a obstipação.
  • Botulismo infantil:
    • Administrar BIG-IV o mais rapidamente possível.
    • Evitar de forma estrita antibióticos no botulismo infantil.
  • Botulismo da ferida:
    • O desbridamento extensivo da ferida é importante.
    • Se decorreram 5 anos ou mais desde a última imunização, são considerados reforços da vacinação antitetânica.
    • A penicilina G e o metronidazol são os antibióticos preferidos para infeções mistas.
    • Os aminoglicosídeos, as polimixinas e a tetraciclina são evitados (podem induzir bloqueio neuromuscular).

Terapêuticas experimentais

  • A piridostigmina e/ou guanidina induzem a libertação de ACh na JNM.
  • Plasmaferese

Fisioterapia

  • Exercícios de respiração:
    • A insuficiência respiratória é a principal causa de morte no botulismo.
    • Respiração diafragmática controlada: mantém o ciclo respiratório
    • Respiração frenolabial: melhora a difusão de gases em repouso e evita o colapso precoce das vias aéreas
  • Exercícios de amplitude de movimento: mantém as articulações em movimento e mantém a função muscular
  • Exercícios de fortalecimento: mantém a função dos músculos

Diagnóstico Diferencial

  • Miastenia gravis: distúrbio neuromuscular autoimune caracterizado por vários graus de fraqueza muscular nos braços e nas pernas. A apresentação clínica também inclui ptose, disfagia, fadiga e dispneia. O diagnóstico é feito através do teste de tensilon e da deteção de anticorpos específicos. A miastenia gravis é tratada clinicamente com esteroides e cirurgicamente por timectomia.
  • Síndrome de Lambert-Eaton: síndrome neuromuscular autoimune frequentemente associada ao carcinoma pulmonar de células pequenas. Os sintomas incluem ptose, boca seca, alterações urinárias e intestinais, disfunção erétil, parestesia e fraqueza dos músculos, que é temporariamente aliviada com o esforço. O diagnóstico inclui deteção de anticorpos, EMG, raio-X e TAC do pulmão. O tratamento inclui a abordagem da causa subjacente e imunossupressores.
  • Síndrome de Guillain-Barré doença do sistema nervoso periférico desencadeada por uma infeção aguda bacteriana ou viral. A apresentação inclui parestesia inicialmente nos pés e pernas, com progressão para paralisia ascendente. Os sintomas adicionais incluem alterações na marcha, fadiga, taquicardia, hipertensão e retenção urinária. O diagnóstico é feito pela análise do LCR, EMG e estudos de condução nervosa. A síndrome de Guillain-Barré é tratada com plasmaferese e terapêutica com imunoglobulina, analgésicos, anticoagulantes e fisioterapia.
  • AVC: emergência médica que causa dano cerebral devido à interrupção do suprimento sanguíneo. A apresentação inclui cefaleia, disartria, visão turva, paralisia facial e parestesias da face, braços e pernas. O AVC é diagnosticado por exame físico, TAC, RMN, angiografia cerebral ou ecografia da carótida. O tratamento depende do tipo de AVC (isquémico ou hemorrágico).
  • Paralisia da carraça: ocorre devido à injeção de toxina pela picada de uma carraça. Os sintomas ocorrem em 2–7 dias. A apresentação clínica inclui parestesias e fraqueza inicialmente em ambas as pernas, com progressão para paralisia ascendente e dificuldade respiratória em algumas horas. Os reflexos tendinosos profundos estão diminuídos ou ausentes. O diagnóstico é baseado nos sintomas e na descoberta de um carrapato incrustado (geralmente no couro cabeludo). A doença é controlada detetando e removendo a carraça, limpando o local da picada e monitorizando o desconforto respiratório.

Referências

  1. CDC. (2006). Botulism: Epidemiological Overview for clinicians. Retrieved April 13, 2021, from https://www.emergency.cdc.gov/agent/botulism/clinicians/epidemiology.asp#:~:text=An%20average%20of%20110%20cases,and%20women%20are%20affected%20equally.
  2. WHO. (2018). Botulism. Retrieved April 13, 2021, from https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/botulism
  3. P Samuel Pegram, Sean M Stone. (2021). Botulism. UpToDate. Retrieved April 13, 2021, from https://www.uptodate.com/contents/botulism
  4. Longo, Fauci, Kasper, Hauser, Jameson Loscalzo. (2011). Infectious diseases – diseases caused by gram-positive bacteria. (Pg 2544 – 2551). Harrison’s Principles of Internal medicine (18th edition).

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